AURÉLIO CUNA
Estatuto e Focalização:
Modalidades
Técnico-narrativas
Propensas à
Expressão de Ideologias
em Godido, João Dias
e Portagem, Orlando Mendes
Livaningo
(Tese)
autor
Aurélio Cuna
Editora
Livaningo
Edição
Junho de 2012
Tiragem
60 exemplares
Corte e pintura
Elcídio Bila e
José dos Remédios
Pintura e acabamentos
Joss
Revisão
José dos Remédios
Design gráfico
Elcídio Bila
Paginação
Elcídio Bila
À memória dos meus
pais, falecidos
AGRADECIMENTOS
À minha supervisora, Prof. Doutora Fátima Mendonça,
expresso o meu agradecimento pelo apoio que me dispensou, quer em ideias, quer
em materiais (bibliografia pessoal).
Agradeço a todos os meus professores, em especial os da
Secção de Literatura, pelo seu contributo em conhecimentos e materiais
bibliográficos.
Às minhas irmãs Regina e Esselina, obrigado pelo apoio
moral e material que me deram.
Ao senhor Sérgio Tique, ao Benedito Cossa (falecido) e à
família, ao dr. Orlando Benzane, ao Zavala, ao Nandinho, ao Sarmento, ao Leandro,
ao Farisse, aos colegas e amigos agradeço pela assistência e solidariedade, com
que me ajudaram em tudo.
Quero, por fim, expressar o meu muito obrigado à Filomena
(Filó), pela modéstia e encorajamento que não dispensou em nenhum momento do
percurso, à Mércia Lídia, Jocelyne e Maconne, Shénia pela cumplicidade.
SUMÁRIO
O presente trabalho consiste num estudo sobre as
Potencialidades dos procedimentos técnico‑narrativos do estatuto do narrador e
da focalização para a expressão da ideologia em Godido, de João Dias, e Portagem, de Orlando Mendes. Tem
como objectivo demonstrar as evidências da articulação entre a técnica
narrativa e a ideologia
Para o cumprimento deste objectivo, operamos com os
conceitos de ideologia, narrador, estatuto do narrador, focalização e
personagem. O trabalho subdivide‑se em três capítulos:
O primeiro capítulo é uma introdução geral que, além de
apresentar o objectivo, a motivação e importância do estudo, a escolha do tema,
a hipótese de trabalho e as etapas metodológicas, faz um enquadramento
histórico‑literário das obras em estudo.
O segundo capítulo destina‑se à análise do corpus,
que inclui a revisão bibliográfica dos pressupostos teóricos.
O terceiro capítulo é constituído por uma conclusão geral
do trabalho.
INTRODUÇÃO
Para um enquadramento histórico‑literário de Godido e Portagem
Godido e Outros Contos, de João Dias[1]
e Portagem, de Orlando Mendes[2] figuram
como obras representativas da Literatura Moçambicana de ficção do tempo
colonial. Produzidos durante o segundo período, de acordo com Fátima Mendonça[3] os textos
em apreço não são alheios ao contexto histórico‑literário em que surgiram.
Coincidindo com os acontecimentos que marcaram o apogeu
do colonialismo português em Moçambique[4], o
período em referência foi o que trouxe de forma mais acentuada a diferença
entre o europeu e o africano. Este fosso assenta, fundamentalmente, no
objectivo principal da colonização: a acumulação da riqueza. Com efeito, para
cumprir este objectivo, as autoridades coloniais introduziram mecanismos de
reprodução, absorção e controlo da mão‑de‑obra africana. Um dos mecanismos, e
talvez o principal, consistiu na fragmentação da estrutura social moçambicana.
A estratégia utilizada pelas autoridades coloniais foi a criação de um grupo
muito reduzido de nativos (maioritariamente mestiços) "como uma categoria
de separação (diferenciação entre africanos)[5]. Trata-se
de indivíduos, denominados assimilados[6], que,
beneficiando de uma educação suficiente e bens materiais, gozavam de estatuto
de cidadão português. O que lhes permitia igualar-se aos brancos perante a lei
civil. O terceiro, e o maior de todos os grupos, era constituído pela população
nativa, denominada indígena. Os indígenas eram submetidos ao
trabalho obrigatório. Estava, deste modo, introduzida a linguagem
discriminatória na composição e funcionamento da sociedade moçambicana.
Para além do assimilacionismo e do indigenato, o estado
colonial montou outros dispositivos, com vista a obtenção e exploração da mão‑de‑obra
barata. Tal procedimento consistiu na legalização de organizações sindicais[7] e de
movimentos associativos, entre outros. Formados por africanos com o mínimo de
instrução, ou seja, entre negros e mestiços assimilados, os movimentos
associativos surgiram não para pôr em causa a política da metrópole para os
africanos em geral (negros colonizados), mas para contestar o colonialismo, nos
aspectos que lhes prejudicava, enquanto uma "classe" privilegiada. De
facto, "sob a máscara da valorização cultural e promoção intelectual da
comunidade negra, o Grémio Africano, e mais tarde a Associação Africana, pugnou
essencialmente pela defesa dos mulatos e assimilados, contra a discriminação
racial que cada vez mais os atingia[8]. Como se
pode ver, da posição ambígua do Grémio resultava um paradoxo de aproximação e
afastamento dos seus membros em relação aos europeus e aos africanos. Tal clima
culminou em rupturas dentro da própria associação, dividindo os mulatos (com
maior prestígio no seio do grupo) e os negros assimilados. Na verdade, o Grémio
era constituído por indivíduos que, por um lado, aspirando alcançar o estatuto
do europeu de quem dependiam economicamente, e, necessitando de se legitimar
politicamente como representantes dos negros, por outro lado, se identificavam,
do ponto de vista de posição profissional e de qualificação literária, como uma
"classe" pertencente ao mundo dos brancos, urbano e
"civilizado", e, do ponto de vista de identidade racial, como
negros". Semelhante postura foi assumida pelo Instituto Negrófilo,
um movimento associativo formado por negros assimilados dissidentes do Grémio
Africano. Com efeito, os objectivos do movimento definiam‑se pela promoção
do desenvolvimento material, intelectual e moral dos seus associados e, em
geral, de todos os negros portugueses.
Portanto, cisões no seio dos movimentos associativos e
posterior formação de novos grupos interessavam deveras à política colonial de
"dividir para reinar". Ou seja, o sucesso da economia capitalista
colonial passava necessariamente, como referimos no início, pela exploração da
mão‑de ‑obra barata. Situação que levou as autoridades coloniais a adoptar a
estratégia ideológica de discriminação racial, que, por seu turno, conduziu à
heterogeneidade social, caracterizada principalmente pelas diferenças de acesso
a propriedade (registo de propriedade e licenciamento nos negócios), na
competição pelo emprego, casas (zonas residenciais e padrões de construção),
saúde e nas facilidades educacionais, entre outros. Essas diferenças pesavam
particularmente à esfera da competição negra[9].
Mas, ainda de
acordo com Penvenne, essas práticas discriminatórias elevaram a consciência da
comunidade negra esclarecida, que aumentando o cruzamento das classes do
racismo, paradoxalmente tendia a unir‑se através da diminuição das
características de classe que os dividiam[10]. É pois
essa consciência que, não tendo alcançado sucesso no período inicial, viria, na
década de 50, a solidificar‑se. Com efeito, "apesar do rigor da repressão,
a intensificação da exploração rural e das barreiras raciais no trabalho, a
crescente divisão e alienação das terras em benefício dos colonos e a
discriminação religiosa não podiam deixar de inspirar oposição da parte das
camadas mais esclarecidas[11].
Ressurgiam, deste modo, com mais força e objectividade, as diversas formas de
contestação contra a ideologia colonial de discriminação e exploração.
Contestação essa que para além das greves e motins, manifestou‑se sob outras
formas, tais como a canção, a música, a dança populares e a literatura[12]. Foi
precisamente nesse âmbito que jovens intelectuais e artistas encontraram
formas, mais ou menos subtis, de criticar ao regime colonial português,
contribuindo para a evolução do conceito da nação moçambicana e da cultura
nacional[13].
A literatura, por ser o meio de comunicação mais imediato e menos dispendioso, foi o recurso mais utilizado nessa acção de contestação levada a
cabo principalmente pelos “filhos da terra”, discriminados pelo sistema
colonial, integrando pretos, brancos e mulatos[14]. Dentre
esses “filhos da terra” destacam‑se José Craveirinha, Noémía de Sousa, João da Fonseca Amaral, Ruí Knopfli, Rui Guerra, Rui
Nogar, entre outros. Estimulados pela atmosfera do período pós segunda guerra
mundial[15] e pelo
amadurecimento das ideias pró‑negras do pan‑ africanismo, do nacionalismo
africano, da negritude, este grupo de jovens produziu uma literatura “marcada
por uma rejeição da cultura colonial”[16]. Trata‑se,
de acordo com Orlando Mendes, de um movimento constituído por africanos e
descendentes de colonos, que assumindo atitudes de inconformismo com a política
colonial solidariza-se com as aspirações populares e apresenta‑se como
porta-voz intelectual do nacionalismo[17]. Nasciam
deste modo as primeiras tentativas sistematizadas de "criação de um espaço
literário nacional[18]. Sendo
salutar referir que a generalização do interesse pelo espaço e vida nacionais,
entre os signatários da actividade literária do segundo período, teve, do ponto
de vista estético‑literário, a influência dos ensinamentos do neo‑realismo
português, introduzidos quer por portugueses que continuavam a chegar ao país,
quer por estudantes moçambicanos em Portugal[19].
Difundido a partir da década de 30, o neo‑realismo afirma‑se como uma nova
focagem da realidade portuguesa, com objectivos postos na conscientificação e
dinamização de classes sociais mais amplas[20]. Com
efeito, enquanto em Portugal o cumprimento destes objectivos impunha ao
movimento a tarefa de “criticar o elitismo pedagógico‑proudhoriano‑anteriano e
dos democratas da Seara Nova, dos anos 20” [21], em Moçambique, o programa do neo-realismo
contribuiu na consciencialização e dinamização da população africana, com vista
a contestação do quadro social vigente, o da colonização e de exploração.
Caracterizando o contributo a prestação dada pelo neo-realismo português na
produção literária do período em referência, Pires Laranjeira afirma que o
neo-realismo e, no caso dos africanos, a negritude surgiram no mundo actual
como respostas estéticas de sectores sociais e culturais com uma perspectiva
histórica de consciência dos problemas da generalidade do povo trabalhador
(sobretudo os operários, camponeses e todos os trabalhadores assalariados, de
baixos rendimentos e vida precária)[22]. A
característica programática deste movimento reforçou ainda mais a já visível
tendência temático -ideológica protestatária da produção literária do segundo
período. Portanto, pela coesão sobretudo temática e ideológica, inspirada na
tomada de consciência nacionalista anti-colonial, a produção literária dos anos
50 assumiu-se como uma “série literária” em correlação com outras séries
vizinhas, nomeadamente, a vida social[23].
Seguindo as análises de Tynianov, Godido e Portagem,
enquanto obras particulares postas em correlação com a respectiva “série
literária”, reflectem a realidade da vida social, outra série que as
condicionou. Ou por outra, a realidade social afirma-se, segundo observa Carlos
Reis, como inspiradora primeira da produção literária[24].
Portanto, podemos afirmar, sem grandes receios, que o contexto social de
moçambicano condicionou a respectiva escrita literária, de que Godido e
Portagem são o exemplo referencial.
A referencialidade de Godido e Portagem tem
a ver, também, com o facto de terem sido produzidos no decorrer de um dos mais
dinâmicos momentos da nossa história literária antes da independência, segundo
Fátima Mendonça[25].
Trata-se de um período áureo pois marcou, principalmente através da poesia, a
afirmação das letras moçambicanas. Tendo sido a ficção representada apenas
pelas obras em estudo mais o livro Nós Matámos o Cão Tinhoso, uma colectânea de contos, da
autoria de Luís Bernardo Honwana (1964)[26]. Ora, se
nos anos 50 a produção da ficção foi fraca, este facto foi agravado nos
períodos subsequentes por escassez de estudos dedicados a essa produção. Até ao
momento, consta-nos que apenas Godido foi alvo de uma reflexão
sistematizada[27].
Os restantes estudos são contribuições dispersas em jornais e revistas.
Portanto, como consequência imediata da ausência de estudos aprofundados e
sobretudo sistemáticos, a ficção dos anos 50 cai paulatinamente no
“esquecimento”. Face a estas circunstâncias,
pensamos ser particularmente relevante uma reflexão em torno de Godido e
Portagem − obras paradigmáticas do período em referência. Acreditamos,
portanto, que esta poderá ser uma das formas de resgatar a ficção moçambicana
dos meados do século XX, ora parcialmente ignorada, contribuindo, desta feita,
para a pesquisa e registo da história literária de Moçambique.
Historicamente, atravessado pelo auge da polaridade
colonizador vs colonizado, o enredo em Godido
e em Portagem surge marcado
por uma acentuada componente temático-ideológica. Mas porque a temática
e a ideologia, consideradas enquanto códigos paraliterários, contribuem para a
compreensão cabal da dinâmica dos códigos técnico-literários, impõe-se-nos a
combinação daqueles com estes. Desta constatação, nasceu a estratégia de
abordagem para o presente estudo: análise do estatuto e da focalização,
enquanto procedimentos técnico-narrativas ao serviço da expressão de ideologias
em Godido e Portagem[28].
Após uma leitura atenta, verificámos que o estatuto e a
focalização constituem vectores da (con)textura ideológica em Godido e Portagem. Isso permitiu-nos
formular a seguinte hipótese de trabalho:
− Há evidências de uma articulação entre a técnica
narrativa e a ideologia em Godido e
em Portagem.
Deste modo, orientamos a presente reflexão no sentido de
demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a ideologia
nos textos ora escolhidos.
Assim colocados, a hipótese e o objectivo do estudo, fica
explícito que a análise do corpus incidirá sobre as categorias discursivas do
narrador e da personagem[29]. A primeira, enquanto instância produtora do discurso e
a segunda, como agente dos acontecimentos que enformam a trama. Identificados
os elementos estruturadores da análise, cumpre-se-nos, agora, indicar as etapas
metodológicas. Na primeira, a anteceder a análise propriamente dita, procedemos
à apresentação do corpus, bem como uma breve abordagem teórica do conceito de
ideologia. A segunda etapa compreende a análise dos textos. No primeiro
momento, examinaremos o estatuto do narrador, com vista a dedução das
insinuações ideológicas decorrentes do contacto que se estabelece entre si e a
história. No segundo momento, analisaremos os textos à luz da focalização
interna, a fim de detectarmos os posicionamentos ideológicos subjacentes à subjectividade
da personagem. No terceiro momento, a análise centrar‑se‑á na focalização
omnisciente, guiados pelo interesse de inferir a ideologia do narrador. Este
mesmo objectivo norteará o quarto momento, no qual deslocaremos o foco da
análise para a focalização externa. A terceira e última etapa acolhe a
conclusão, seguida de bibliografia.
1. ANÁLISE:
Estatuto e Focalização: procedimentos técnico-narrativas
ao serviço da expressão da ideologia em Godido
e Portagem
O Corpus
Godido e Portagem desenvolvem ambos a temática de contestação do sistema exploratório e
discriminatório da sociedade colonial. Contudo, isso acontece de maneira
particular em cada texto.
Composto por três excertos[30] (Godido, Sonho de Negro e Godido (extra)), o texto de João Dias
levanta uma problemática social, originada pela convivência conflituosa de dois
grupos heterogéneos: o grupo maioritário, constituído pela população nativa e o
grupo minoritário, formado por portugueses. Trata-se de um conflito
consubstanciado pelo recurso permanente a uma linguagem dicotómica, do tipo
brancos vs negros; exploradores vs explorados; instruídos vs não instruídos.
Várias personagens desfilam, representando este cenário. Entre elas, destaca‑se
Godido, uma personagem que toma todas as iniciativas da história, o que,
consequentemente, lhe confere a função de personagem central. O destaque
atribuído a personagem Godido, comprovado pela sua escolha para título da obra
e do excerto em estudo, é também reiterado por Orlando Albuquerque, prefaciando
a primeira edição de Godido e Outros Contos (1952): “Godido, o
personagem principa1 dos diversos contos, iria passando de uns para os outros,
estabelecendo assim um fio de ligação entre eles e dando lhes certa unidade...”
[31] Nos três
excertos que compõem o texto em estudo é notória a presença permanente de
Godido, bem como a função aglutinadora que exerce sobre os mesmos.
A posição de proeminência ocupada por Godido na narrativa
leva a que, em termos discursivos, o narrador concentre a sua maior atenção
sobre esta personagem. Com efeito, nos excertos Godido e Godido (extra), o
doador do discurso acompanha com zelo o percurso e vivências da personagem
central, desde o seu nascimento e infância na Senzala, deslocação, até à
posterior fixação na cidade. Aqui, Godido, contra todas as expectativas que
alimentava, enfrenta e contesta a crueldade do sistema colonial. Em Sonho de Negro, o discurso do narrador representa um Godido revoltoso contra o
sistema discriminatório. A sua acção, que também decorre numa zona urbana,
culmina com uso da força, com vista a resolução do conflito.
Nota-se, portanto, que, nos três excertos, o narrador não
só conta a história, mas também intervém, criticando, filosofando, tomando
posição[32]. Isto é,
o narrador sobrepõe-se às personagens. Esta prática surge de forma deliberada e
frequente, nos momentos concedidos à personagem central[33]. Em Godido e Godido (extra), por
exemplo, a figura de Godido é alvo das manipulações do narrador, que ora
lhe inculca qualidades e/ou defeitos, ora lhe atribui atitudes e/ou
sentimentos. Eis o que se nos oferece nesta passagem, em que o narrador,
fazendo apelo ao discurso onírico, prevê o nascimento de Godido, atribuindo-lhe
qualidades heróicas: “Nascera um quase‑Deus!...” (p. 15); “o mesmo negro feito
Gungunhana de outras gerações”[34]. Noutras
ocasiões o narrador antevê, avaliando ele próprio, o futuro da personagem:
“Viverá a vida inteira camuflado como os carros de assalto, propagando o mal aos seus descendentes” (p. 19),
chegando mesmo a insinuar sentimentos e explicações que Godido daria ao seu
destino: “Ele, que nascera e vivera na escravatura, pedia graça
De «dominus»” (p. 22) ; “nascera rei nas costas da mãe,
fora ditador onde a mãe não fora mais que
o povo oprimido” (p. 20); “E porque daquela boca tinha saído uma prece de
compaixão, um pedido de graça, ali estava ele amarrado à imundície” (p. 22).
No entanto, em determinados momentos, o controlo do
narrador sobre a personagem central cessa significativamente. Tal sucede, por
exemplo, no excerto Sonho de Negro,
no qual, em forma de sonho, Godido, por iniciativa própria, derrota, em luta, o
branco Antunes, metonimicamente, representante de todos os agentes do sistema
colonial: “o corpo sem vida atirou‑o, ao acaso, para o automóvel” (p. 33).
Recapitulando: os excertos Godido e Godido (extra)
documentam o nascimento de Godido, na Senzala, a infância, completada na
cidade, lugar que o acolheu pelo resto do tempo. Foi, pois, na cidade que a
personagem tomou a consciência das barreiras da sociedade colonial. O terceiro
excerto, Sonho de Negro, tem como cenário de fundo, a
concretização, em sonho, do desejo de Godido de acabar com o sistema colonial
de exploração.
À semelhança do que sucede no
texto Godido, no romance[35] Portagem, a acção parece deixar transparecer a sociedade colonial,
estruturalmente heterogénea. E, uma vez mais, o traço “raça” constitui
justificativa principal, do qual derivam todos os outros mecanismos e
linguagens de discriminação. O elemento “raça” aparece, pois, como elemento
estruturante da narrativa em Portagem. Com efeito, não pode ser entendido como mero
acaso a evolução, no texto em estudo, de uma vasta equipa de personagens,
distribuídas em três grupos,
racialmente distintos (brancos, negros e mulatos). O estigma racial surge, portanto, como principal responsável
pela relação de alteridade entre as personagens actuantes no universo
diegético em Portagem. O mulato João Xilim, síntese de duas raças (negra
e branca), evidencia-se como protagonista da acção. Trata-se de uma personagem
cuja vivência, densamente marcada por sucessivas e atribuladas aventuras,
atravessa o romance. É, pois, assinalável a função aglutinadora da esfera de
acção de João Xilim, no decorrer dos vinte e oito capítulos que compõem a obra.
Repare-se, por exemplo, que, o primeiro capítulo, embora dominado pela velha
Alima, a origem de João Xilim (filho de pai branco e mãe negra) constitui
motivo para Alima repreender a filha Kati por esta viver junto e sob ordens do
homem branco: “Você tem um filho que anda na terra do branco, metido com os
brancos, não é? Ih! Ih! Ihi... um filho de tua barriga que é filho dum branco!
Um filho para aprender todas coisas de branco” (p. 13). Outro aspecto que
reputamos de particular realce a respeito do papel central de Xilim é o facto
de este plasmar, em termos temáticos, o conflito, sobretudo racial, da
sociedade colonial: “Proibiram‑no de ir brincar com os meninos da sua idade
(...) ele deveria ser apenas o moleque das limpezas e nas horas vagas, única
companhia para a infância de Maria Helena” (P. 16); “Este moleque parece ‑me
esperto demais. Além disso é mulato. E não
gosto nada desta raça. São mais falsos que os pretos” (p. 17). (Cf. também pp.
32, 33, 53, 64, 74, 98 e 112).
A função vectorial de João Xilim na diegese é, ainda,
consubstanciada pelo conjunto das constantes rememorações de passagens mais
importantes da sua vida[36]. Enfim,
a compreensão da história passa pelo acompanhamento da trajectória de João
Xilim, resumida nessas rememorações. Tal é a percepção que temos, vendo João
Xilim (i) em profunda obsessão pela busca da sua identidade. “E recorda‑se que
fora naquele verão que se apercebera de uma realidade que viera a marcá‑lo do
ventre de sua mãe. Ele não era negro como a outra gente nascida na terra do
Marandal” (p.21); (ii) rejeitado e marginalizado quer em Marandal (sua terra de
origem), quer noutras regiões por onde passou[37].“E viu
que o menino do Marandal estava ainda crescendo para ser um homem sem lugar
próprio na sua terra, porque fugira do Marandal e era filho da negra Kati que
se entregara ao patrão Campos e fora moleque da menina Maria Helena” (p. 26);
(iii) ensaiando uma vingança, “Todas as recordações têm, contudo, novamente, o
sentido antigo. Precisa de vingar‑se dos que lhe fizeram sofrer” (p.79); Ou
(iv) conformado, por fim, com o seu destino atribulado. “Todas as raivas da sua
vida passam‑lhe, uma a uma, pela memória. Não, não tem nada que se arrepender.
Cumpriu fielmente o seu destino. Foi sempre
ele, o mulato, um homem clandestino: na barriga da mãe, moleque em casa de
D. Laura, menino da infância de Maria Helena, testemunha do abraço da negra
Kati e de patrão Campos, capataz da mina do Marandal, amante ilegítimo,
emigrante sem passaporte, número extra entre os sentenciados negros, contrabandista,
vingador despercebido” (P.160).
A par do realce conferido à personagem central, denota-se
em Portagem uma presença forte e activa do narrador. Com efeito, este
não só narra a história, como também cumpre com a tarefa de supervisionar as
suas personagens faccionais, segundo observa Carmen Lydia Sousa Dia[38]. É no
âmbito dessa supervisão que o narrador ora conjectura: “No entendimento dos
negros da mina do Marandal, João Xilim é o patrício que emigrou e aprendeu a
ser diferente deles” (p.15); “Às vezes, um e outro entendem que João Xilim
conheceu diversos padrões da condição humana” (p. 31); Ora sugere a prática de
determinados actos: “E compreende que precisaria de realizar um acto violento
para escapar à necessidade dessas perguntas, ou obter resposta para elas” (p.
39); Ora recrimina algumas atitudes: “Não é que ninguém iria compreender essas
coisas mesquinhas que são a razão do cansaço da vida toda de João Xilim?” (p.
107).
Como se pode perceber nos segmentos textuais acabados de
transcrever, a supervisão do narrador incide particularmente sobre João Xilim,
o que prova a atenção que aquele dedica ao protagonista, por um lado, e
confirma a diferença que se impõe entre os dois, por outro lado. Ou seja, o
discurso em Portagem é doado por um narrador adulto, experiente, com
elevado nível de conhecimentos, face a ampla visão do mundo amplo, que detém.
Em contrapartida, o protagonista alarga a sua visão do mundo à medida que vai
tendo o contacto directo com o mesmo: João Xilim mete-se às suas aventuras,
desde criança, o que significa que a mentalidade amadurece condicionada pela
idade e pela instrução, que era praticamente nula.
Em função do exposto, verificamos que na estruturação de Godido
e de Portagem, dois elementos se evidenciam: o narrador e a Personagem.
E, consideradas do ponto de vista da sua subjectividade (visão do mundo) e não
só, e, tendo em vista o objectivo deste estudo: (demonstrar as evidências da
articulação entre a técnica narrativa e a ideologia), quer a categoria do
narrador, quer a da personagem (sobretudo o protagonista) dominam o campo de
análise em vista.
Portanto, resta-nos frisar que, sendo constituído por
duas obras, o corpus ora apresentado obriga-nos a seguir uma estratégia de
abordagem paralela, por forma a determinarmos não só os aspectos aproximativos,
mas também os de ordem distintiva, nos textos.
2.1 Texto literário e ideologia
Uma tentativa de definição das relações entre o texto
literário e a ideologia coloca-nos perante a difícil e ingrata tarefa de
aproximar dois territórios autónomos, aparentemente alheios um ao outro, e
determinar-lhes possíveis entrosamentos. No entanto, essa tarefa é inevitável
para o presente estudo, pois, como refere Carlos Reis, a articulação entre
literatura e ideologia é relevante, sobretudo quando estão em causa as criações
de artistas que marcaram indelevelmente as épocas em que surgiram[39].
As relações entre literatura e ideologia são, sem margem
para dúvidas, de natureza complexa. Justamente porque pressupõem a acomodação pacífica
de dois domínios autónomos e diferentes num mesmo espaço: o texto literário.
Isto acrescido às variadíssimas acepções atribuídas à literatura e à ideologia.
Porém, facto importante é que, embora encaradas de forma variada
(hiper-valorizadas por uns, banalizadas por outros, ou aceites com algumas
reservas por outros ainda[40]), as
relações entre literatura e ideologia integram a contextura do discurso
literário. Por exemplo, reunidos em Literatura, Significação e Ideologia
(compilado por Maria Alzira Seixo) Étienne Balibar e Pierre Macherey, partindo
da noção de que a literatura é produto de uma prática social, consideram o
texto literário um operador de uma reprodução da ideologia no seu conjunto;
Júlia Kristeva, entendendo literatura como prática semiótica, vê o texto
literário como o lugar em que a significância como prática pode fender a
ideologia. Por seu turno, W. Dithey, seguindo uma análise de orientação
sociológica, sustenta que a poesia (literatura), enquanto produto da vida
cultural de uma época, exprime directamente uma concepção do mundo. Fácil de
verificar, nestas formulações, é que Balibar e Macherey, quer Kristeva, ou
Dithey referem todos a vigência da componente ideológica no texto literário,
pese embora a acepção específica que cada um atribui ao complexo lexema
literatura. Complexo é, igualmente, o termo ideologia. Este é passível,
portanto, de várias acepções, como o dissemos, algures neste trabalho. Atento a
este facto, Terry Eagleton alude‑o na sua discussão em torno do conceito de
ideologia, começando por afirmar que “o termo ideologia tem um conjunto de
significados úteis, os quais nem todos são compatíveis uns com os outros[41]. A
seguir, o autor de IdeoIogy procede a uma listagem de cerca de dezasseis
definições para o conceito de ideologia, na sua óptica, correntemente em
circulação.
Alertados da pluralidade interpretativa do termo
ideologia, lançámo-nos à pesquisa bibliográfica sobre o assunto,
particularmente para examinarmos as diferentes acepções atribuídas ao termo. O
resultado alcançado foi que, de um modo geral, as definições de ideologia
tendem a considerá‑la um sistema instituído para manter a ordem instalada num
grupo determinado. Tal é o que se depreende, por exemplo, nos seguintes
registos: “ideologia é um sistema de representação dotado de uma existência e
de um papel histórico, no seio de uma dada sociedade”; ou “sistema de ideias e
de juízos explícitos e geralmente organizados que descrevem, explicam,
interpretam ou justificam a situação de um grupo social ou de uma colectividade[42]. É
igualmente notória, na maioria das definições, a tendência de associar a
ideologia à 'classe' ou grupo dominante. O que quer dizer, por outras palavras,
que só a 'classe' dominante − aquela que detém o poder − é que pode gerar
ideologia, segundo advogam os estudos marxistas das relações sociais. Vendo a
questão desta forma, fica de fora a ideia de reconhecer ideologia gerada por
grupos desprovidos do poder. Estamos, portanto perante uma atitude reducionista
em relação à noção de ideologia. Será, pois, com Fredric Jameson que esta
conhecerá uma superação. Na óptica de Jameson, “toda a ideologia, no sentido
mais forte, incluindo as formas mais exclusivas da consciência da classe
dominante, assim como das classes opostas ou oprimidas, está no seu sentido
muito utópico natural”[43]. A
elevação do fenómeno da ideologia ao domínio da consciência abre, por um lado,
espaço a entrada em cena dos grupos sociais menos expressivos, bem como para a
sua percepção como um devir. Não um devir ilocalizável, no entendimento de
Pires Laranjeira, mas como manifestação de “uma consciência emergente de
classe, resultante da luta entre grupos ou classes”[44]. A
leitura de Godido e Portagem chama-nos a atenção para a vigência dessa
consciência emergente do grupo dos desamparados, oprimidos, vitimados por um
inimigo comum (utilizando as palavras do próprio Jameson), ou, dito de outra
maneira, ideologia no seu sentido mais utópico, a “contra ideologia”, para
Marilena Chaui[45].
Vemos, portanto, essa consciência emergente a atravessar, o universo diegético
nas obras em estudo, funcionando, até, como leitmotiv.
Posto isto, coloca-se-nos a seguinte pergunta: de que
forma as insinuações ideológicas se atestam no texto literário? Remetemos a
resposta ao próximo capítulo. No entanto, importa frisar que a franca
progressão da teoria literária e das ciências de comunicação tem contribuído
para uma cada vez maior aproximação entre si. Eis que se tornou lugar comum a
concepção da literatura como um sistema de comunicação, sistema modelizante
secundário[46].
Conceber, nestes termos, a literatura significa, por um lado, dotá-la de
autonomia, e, por outro lado, alargar o campo da interacção com outros sistemas
do universo cultural. E daí a relevância da afirmação de que “o texto literário
é sempre codificado pluralmente, isto é, codificado, para além de uma
determinada língua natural, com a intervenção de outros códigos como o métrico,
o estilístico, o retórico, o ideológico[47]”. Na
mesma proporção se situa a asserção de Gilberto Matusse, segundo a qual, “a
literatura, como sistema, potencia a representação do mundo e, assim também a
concepção que, dele se tem”. Para este estudioso de literatura “um texto
particular [literário], ao actualizar as virtualidades que o sistema lhe
oferece, evoca uma parcela da totalidade que é o mundo, e na superfície dessa
evocação são detectáveis signos que indiciam ou explicitam a adesão a
determinados valores ideológicos e/ou a rejeição de outros[48]. Pode-se
perceber que os signos que indiciam ou explicitam a adesão a determinados
valores ideológicos ou rejeição de outros são regulados, no caso particular da
narrativa literária, por códigos técnico‑narrativas, tais como o estatuto do
narrador, a focalização, entre outros requeridos na configuração do discurso.
2.2. A heterodiegese e a imagem
ideológica do narrador
Dentre as personagens possíveis
de um romance, há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas
funções no processo narrativo e na estruturação do texto − o narrador
(Vítor Manuel de Aguiar e
Silva)
Qualquer tentativa de obliterar a vigência e a
importância do narrador na sintaxe narrativa corresponde à abolição do próprio
discurso narrativo. É, pois, ciente deste facto que Aguiar e Silva, apoiando-se
nas análises de Platão sobre a diegese, e a mimese poéticas,
define o narrador como uma “instância doadora do discurso”[49]. Por seu
turno, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes definem o narrador como entidade
fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso[50]. Ambas
as asserções convergem na reiteração da função do narrador: produzir o
discurso. O cumprimento desta função desencadeia um conjunto de relações entre
o narrador e a história. A atenção a tais relações leva a que se questione a
atitude ou «situação do narrador relativamente ao enunciado que a sua narração
produz»[51]. Aqui
emerge a questão do estatuto do narrador.
À semelhança do que sucede com outros códigos técnico-
narrativos, a matéria do estatuto do narrador reclama um lugar privilegiado nos
estudos narratológicos. Após um assinalável domínio na análise e interpretação
da narrativa literária, designações como «narrador na primeira pessoa» e
«narrador na terceira pessoa» (usualmente empregues nas escolas), «narrador
pessoal» e «narrador impessoal» foram alvos de questionamentos, e, até,
contestações. Na origem disso está a ineficácia dos termos gramaticais de
«primeira pessoa» e de «terceira pessoa», assim como os qualificativos
<<pessoal>> e <<impessoal>>.
Com efeito, tais noções geram confusões de ordem
conceptual, afectando, por conseguinte, a apreensão do estatuto do narrador.
Portanto, exigia-se uma atitude correctiva. E essa foi proposta por Genette, ao
afirmar que “a presença, explícita ou implícita, da «pessoa» do narrador só
pode estar na sua narrativa, tal como qualquer sujeito de enunciação no seu enunciado, na «primeira pessoa»” (o sublinhado é nosso) .
Partindo deste princípio, o autor de Figures III, declara
que “a persona do narrador não deve ser caracterizada e definida em função de formas gramaticais, mas em função
do seu estatuto narrativo (sublinhado nosso)[52]. Esta perspectiva, diz com razão Carlos Reis[53],
privilegia o enquadramento do narrador em relação à diegese. É no âmbito desse enquadramento,
que o narrador deixa transparecer marcas da sua subjectividade no discurso. Ou
simplesmente a sua ideologia. Deste modo, põe-se de lado a ideia da
neutralidade do narrador, perante os acontecimentos que narra[54]. Importa
sublinhar, neste local, que a subjectividade de um narrador inserido na própria
história que conta será diferente da manifestada por um narrador de história da
qual está ausente; será igualmente diferente da daquele narrador que conta a
sua própria história. Dito por outras palavras, o estatuto do narrador
determina a gradação da sua subjectividade (ideologia). Neste sentido,
justifica-se plenamente o exame do estatuto do narrador em Godido e em Portagem.
Para o efeito, adoptamos a tipologia estabelecida por Genette.
a) Narrador
homodiegético: narra uma história na qual tomou parte, como personagem
secundária. Portanto, este tipo de narrador cumpre dois papéis distintos: o de
contar e o de praticar eventos. No entanto, observa Genette[55], se o
narrador participou na história que narra, como personagem principal, o seu
estatuto é autodiegético.
b) Narrador
heterodiegético: por oposição ao narrador homodiegético, o narrador
heterodiegético é aquele que narra uma história na qual não tomou parte. Isto
é, não integra o elenco das personagens dessa história.
Em Godido e em Portagem, o discurso é doado
por um narrador heterodiegético; ausente do plano dos actantes, para Carlos
Reis. Daí a relação de
alteridade entre si e a história; daí a autoridade, quase inquestionável,
desse narrador[56],
que exibe um saber não compartilhado com a personagem:
“Ele, que nascera e vivera na escravatura, e pedia a
graça de «dominus» e chamavam‑no um revoltado, inflamado de ideias
enciclopedistas. Não sabia ler nem conhecia de vista a metafísica mas era
partidário de Diderot”, (G.[57]
p. 22).
“A família Santos não vivia como as grandes massas
miseráveis nem com as comodidades de Henri Ford. Era daquelas famílias
condenadas a não ficar na História” (G. P. 23).
Estabelecendo relações alegóricas entre a época de
escravatura e a vivência do protagonista, ou fornecendo detalhes sobre a
situação económica da família Santos, o narrador critica o esquema de vida
montado pelo sistema colonial. Portanto, beneficiando da posição inquestionável
que o estatuto heterodiegético lhe confere, o narrador exprime o seu
posicionamento ideológico. Para o efeito, serve‑se da situação das próprias
personagens[58],
quer utilizando um discurso científico-filosófico[59], (pedia
graça de «dominus»; ideias enciclopedistas; metafísica; partidário de Diderot),
quer emitindo uma opinião depreciativa (Era daquelas famílias condenadas a não
ficar na História). Com efeito, se por um lado, com o discurso científico‑filosófico,
o narrador produz uma imagem positiva do protagonista Godido, por outro, ao
traçar um quadro económico negativo da
família Santos (patrões do negro Godido), ridiculariza o branco, hierarquicamente superior, na lógica
da preconceituosidade racial. Deduz-se que a primeira atitude do narrador
traduz a sua simpatia para com o protagonista, enquanto no segundo se reflecte
o contrário para com Santos. Do ponto de vista ideológico, o narrador opõe‑se
ao sistema colonial, servido por Santos. Sabe‑se que Santos, para além de ser
patrão de Godido[60],
é normalmente tratado por chefe, e, “nos dias de serviço, descarrega na
negralhada, se o guisado lhe cai resvés no estômago, (G. P. 23).
Ao abrigo da polaridade que se abre entre si e o universo
diegético que representa, o narrador censura os hábitos da família Santos:
“A Isaura em vez de beijar o pai, fazia‑o ao primo Artur
«De» «E» rico e solteiro, com fábricas de conservas. Ninguém se importava
porque era Natal... e era o primo Artur, solteiro e com fábricas de
conservas...” (G, p. 26).
A atitude crítica do narrador revela‑se na alusão satírica
ao Natal e à riqueza, repetidamente evocada pela analogia “com fábricas de
conservas” e pelo adjectivo “rico”.
Colocando sempre a personagem central no centro das
atenções, o narrador manifesta, na seguinte passagem, um dos seus mais
significativos posicionamentos ideo1ógicos:
“Ao longe pinceladas amarelo‑avermelhadas davam cidade.
Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. Hih! Tão bom!
Olhó o cidade. − O ambiente ter‑se‑ia rido do seu estado de alma se o soubesse.
Como se não fosse humano um negro pensar que a «vida do
negro há‑de acabar» ” (G. P. 38).
Recorrendo ao discurso justificativo[61], o
narrador demarca-se do “ambiente” que se teria rido do estado de alma de
Godido, e coloca‑se ao lado deste, justificando-lhe os sentimentos com uma
intervenção não só eivada de conotações moralistas, mas também inspiradora de
esperança[62]:
“como se não fosse humano um negro pensar que a «vida de negro há‑de acabar» ”.
É, pois, nesse sinal de esperança, expresso pelo tempo verbal, futuro perifrástico:
“... há-de acabar”, que o narrador exprime a sua visão da realidade. Visão essa
mais utópica do que real: fim do sistema colonial e, consequentemente, fim das
hostilidades contra os negros.
Em Portagem, é também principalmente sobre a
personagem central (João Xilim) que o narrador heterodiegétíco dedica a sua
atenção. Isso acontece, por exemplo, ao lhe traçar os contornos físico‑psicológicos:
“Os músculos de criança (João Xilim) responderam com alegria ao esforço
violento de segurar firme um espigão...” (p. 18).
“Remexia‑se [João Xilim] inquieto na esteira e tossiu,
tentando que algum dos companheiros despertasse. Respondeu‑lhe um, com uma
praga. Voltou a tossir, mais forte. Então o homem que praguejara espreguiçou‑se, bocejou ruidosamente (...). Outras pragas acolheram a sua jovialidade”
(pp. 22‑23)
Ao apresentá‑lo com uma força e energia (os músculos
responderam com alegria) suficientes para responder ao trabalho duro (esforço
violento), o narrador constrói uma imagem positiva de João Xilim. Como referimos
em relação a Godido, também em Portagem a predilecção do narrador
pela personagem central deve‑se sobretudo às afinidades ideológicas entre
ambos. É no âmbito dessas afinidades que o narrador promove continuamente a imagem do herói, referindo‑se‑lhe as qualidades, por um lado, ou menosprezando,
por outro lado, aquelas personagens que se lhe opõem ideologicamente:
“A vida prossegue igual no Marandal. E só Xilim o
distingue do mundo diferente por onde andou, um mundo idêntico ao que patrão
Campos e D. Laura conheceram antes de se fixarem ali e que eles próprios talvez
já quase esqueceram” (p. 25). O narrador atribui, nesta passagem também
dedicada a João Xilim, uma amnésia de fixação ao Campos. Muito embora o faça de
um modo duvidoso, denunciado pelo apelo ao discurso modalizante[63]: “...
eles próprios (os Campos) talvez já quase esqueceram”. Enquanto em João Xilim
reconhece a capacidade de memorização: “... Só Xilim o distingue do mundo
diferente por onde andou...”
Embora as afinidades ideológicas justifiquem a afeição do
narrador pela personagem principal, aquele, gozando da relativa liberdade que o
estatuto heterodiegético lhe confere, censura, ainda que de forma ténue,
algumas das atitudes da personagem principal:
“E explicaria o porquê de tudo. Mas acha que não vale a pena. Não é que ninguém iria compreender essas coisas mesquinhas que são
a razão do cansaço da vida toda de João Xilim?” (p. 107).
“E nessa noite em que inventa uma infância para deixar
aos outros.” (p. 160).
Desde a resposta em tom interrogativo, até ao sentido
artificial (pouco consistente) do termo “inventar”, passando pelo valor
insignificante que a expressão “coisas mesquinhas”, o narrador manifesta a sua
decepção, face a actuação do herói, que, como referimos na apresentação do corpus,
redunda num ciclo de aventuras mal sucedidas. Portanto, gozando do estatuto
heterodiegético, o narrador permite-se a sancionar algumas investidas da
personagem principal. Algo inesperável, quando se trata de um narrador
homodiegético, que se limita apenas a testemunhar os acontecimentos,
permanecendo, portanto, como exterior em relação à interioridade e à motivação
profunda dos actos da personagem principal, como observa com justeza, Aguiar e
Silva.[64]
Em Godido, no lugar de recorrer ao discurso sancionatório,
o narrador opta por uma atitude proteccionista, quase paternal, em relação à
personagem principal. Com efeito, é notória a preocupação em colocá-la na
condição de vítima do sistema, ao qual imputa todos os defeitos, todas as
falhas, uma vez ter sido este mesmo sistema que a moldou.
Portanto, produzido por um narrador ausente do universo
diegético, o discurso em Godido e em Portagem
é substancialmente marcado pelas intervenções desse narrador, que, não podendo
ser julgado dado o seu estatuto heterodiegético, protege, critica, opina,
comenta de forma desinibida sobre a realidade que representa. Na acção do
narrador, frequentemente atenta à personagem central, projecta‑se a sua imagem
ideológica, plasmada desejo (visão utópica) de pôr fim ao sistema colonial de
exploração.
2.3. A focalização interna e a ideologia da personagem
O que distingue o discurso narrativo literário dos
restantes (por exemplo, o discurso científico) é o facto de aquele ser
produzido por um narrador fictício, que para o efeito acciona um conjunto de
artifícios técnico‑narrativos, dos quais a focalização é parte integrante.
A focalização constitui matéria indispensável para a
teoria e análise da narrativa literária.
Introduzido por Gérard Genette[65], o termo
focalização designa o mecanismo de regular a quantidade e qualidade de informação diegética
apreendida/captada, para ser transmitida pelo narrador. O termo abstracto
focalização vem a superar as anteriores noções de “ponto de vista” (Percy
Lubbock), “visão” (Jean Pouillon), “restrição de campo”, (George Blin),
“aspecto” (Tzvetan Todorov), todas padecentes conotações visualistas,
decorrentes da sua natureza pictórica[66].
O termo focalização ultrapassa o alcance conseguido pelos
anteriores, pois não contempla apenas a apreensão da informação visível,
abrange também o sensorial, o psíquico, o moral, o intelectual, em suma: o
consciente e o subconsciente do narrador e/ou das personagens. A outra vantagem
conseguida pelos estudos narratológicos, com a introdução do termo focalização,
tem a ver com a abolição da rigidez na escolha e utilização, pelo narrador, de
um certo ângulo de visão[67].
Efectivamente, demarcando-se da rigidez inflexível e do reducionismo das
perspectivas anteriores, o termo focalização concede ao narrador a liberdade de
diversificar os elementos focalizadores (personagens e ele próprio incluído)
dentro do discurso.
No entanto, embora elogiada por vários estudiosas como
uma verdadeira inovação, a abordagem genettiana de focalização não escapou a
alguns reparos. Por exemplo, Aguiar e Silva qualifica de “feliz” o termo focalização, em virtude de
este dar conta da “relação entre o narrador e a história; o narratário e o
leitor[68]”. Porém,
o autor da Teoria da Literatura acusa Genette de pretender mutilar essa
relação ao admitir o tratamento, em termos práticos, da problemática da
focalização desligada da questão do estatuto. “Como se pode considerar idêntica
a focalização do romance em que o herói conta a sua história e a focalização do
romance em que a história é contada por um narrador omnisciente? - questiona
Aguiar e Silva, pondo em causa a postulação de Genette, que defende identidade
das focalizações nas duas situações, à prior, diferentes, do ponto de
vista do estatuto do narrador. Efectivamente, à alteração do estatuto do narrador
correspondem variações de vária ordem na vigência das modalidades de
focalização, sobretudo quando estudada do ponto de vista psicológico, ético e
ideológico[69].
Por seu turno, Carlos Reis elogia as reflexões de Genette sobre a focalização,
porque, no seu entender, tendem “a conceder ao narrador uma liberdade de acção”[70]. Porém,
também se opõe ao apagamento das relações mútuas entre a focalização e o
estatuto. Discorda igualmente das noções de “narrativa não focalizada” e de
“focalização zero”, propostas por Genette, em detrimento da focalização
omnisciente. Para Carlos Reis, aquelas noções evocam não um narrador investido
de poderes ilimitados (narrador omnisciente), mas sim uma modalidade de
discurso de ficção destituída do domínio de qualquer perspectiva.
De referir que a discussão em torno da focalização
constitui, até hoje, um espaço aberto. Contudo, parecem-nos, concordando com
Carlos Reis, questionáveis as noções genettianas de “narrativa não focalizada”
e de “focalização zero”. Na medida em que a serem assumidas literalmente,
deparar-se-ia com um novo problema: a não regulação da quantidade e qualidade
de informação diegética, em determinados momentos do discurso narrativo. Por
isso, a modalidade de focalização omnisciente, evitada por Genette, afigura‑se‑nos
indispensável. Aliás, retirar ao narrador a função focalizadora equivale, a
nosso ver, a ignorar um dos seus papéis fundamentais: manipulador da informação
diegética. Portanto, a modalidade de focalização, nas suas três vertentes
(interna, externa e omnisciente), assume, neste ensaio em particular, um papel
de vital importância, conforme demonstramos a seguir.
A situação em que o narrador apreende e conta os eventos
da história, sob a mediação de uma personagem inserida nessa história, denomina-se
focalização interna[71].
Ou seja, adoptando a
Focalização interna de uma determinada personagem, o
narrador submete‑se aos conhecimentos e capacidades dessa personagem
focalizadora. Aqui afirma‑se o desempenho da personagem[72], na
configuração do discurso narrativo.
Como referimos anteriormente, em Godido evoluem
personagens cuja distinção se processa a partir de um operador racial. Godido,
personagem responsável pelas principais projecções coordenadas temáticas e ideológicas da obra,
é um negro pobre, que emerge entre outros negros de condição também precária.
Portanto, fazendo alusão aos ensinamentos de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes,
podemos afirmar que é em função da personagem Godido, que a história existe em
Godido. O que quer dizer, por outras palavras, que Godido desempenha a função
de herói.
Tendo sobrevivido a várias perspectivas teóricas (por
exemplo, o funcionalismo de Propp, a semiótica greimasiana[73]) o
conceito de herói assumiu nos anos 50, tal como sucedeu no período áureo do
Romantismo, uma importância significativa. Tal é o que transparece nas
seguintes palavras de Lukács: “no romance, a psicologia do herói é demoníaca;
assim, o conteúdo do romance é a «história dessa alma que vai pelo mundo para
aprender aconhecer‑se, procura aventuras para nelas se testar e, por essa
prova, atinge a sua medida e descobre a sua própria essência»[74]. Deste
modo, interessado em representar a vivência interior, isto é, psicologia do
herói, o narrador adopta a focalizarão interna. Vivência essa marcada por
incursões ideológicas, enquanto práticas que visam desmistificar as
contradições vividas pelas personagens[75]. O que
quer dizer que a análise da focalização interna permitir‑nos‑á deduzir as
posições ideológicas da personagem focalizadora, enquadrada nos eventos e ambientes.
A fórmula de focalização, assevera Genette, nem sempre se
aplica ao conjunto de uma obra, mas antes a um segmento narrativo determinado,
que pode ser muitíssimo breve[76]. Tal é o
caso, por exemplo, da seguinte passagem textual do monólogo interior − prova
absoluta da vigência da focalização interna na narrativa[77]:
“Iria para a cidade, para a civilização, onde não haveria
certamente nem brancos a chicotear, nem pretos a obedecer. A civilização
deveria ser uma coisa melhor, com sabor a «matapa» ou toucinho-do-céu”, (G. p.
20).
Enunciada pela voz do narrador, a sensação positiva que
Godido tem da cidade traduz‑se na forma optimista como ele imagina esse espaço
urbano. É o que indica o qualificativo melhor que, embora transportando
algum receio assinalado pelo vocábulo deveria, (discurso modalizante),
sugere uma impressão boa da civilização urbana, ora imaginada. A mesma sensação
aparece sugestivamente ilustrada pela analogia civilização/matapa –
toucinho-do-céu[78].
Portanto, a civilização, imaginada por Godido, mas interpretada pelo narrador[79], não
seria desagradável, como certamente não o são a matapa e o toucinho-d-
céu. Deste jogo da imaginação da personagem/interpretação do narrador
filtram- -se os
posicionamentos ideológicos da personagem focalizadora Godido. Este denota
desconhecimento do espaço e ambiente urbanos, completamente novos para si.
Porém, passado algum tempo, o cenário alterou‑se:
“Ali [na cidade] estava toda uma doutrina de raças. Agora
compreendia que ser negro era algo mesquinho que lepra. Era cancro entre os
civilizados”. (G. p. 21)
Com as expressões doutrina de raças e ódio de
raças, o narrador traduz a visão de Godido sobre a civilização urbana:
centro pedagógico da prática de racismo promotor da desqualificação do negro,
segundo sugerem os seguintes segmentos, elaborados com o auxílio do discurso
figurado[80]:
“Ser negro era ser algo mais mesquinho que a lepra: era
ser cancro entre os civilizados” (G. p. 21).
Da comparação mais mesquinho que a lepra, apreende‑se
urna desqualificação do negro, tido como mais horripilante do que a lepra. E do
paralelismo metafórico constituído pelos vocábulos negro e cancro
reforça a condição de coisa do negro, imposta pelo sistema racista colonial.
Este é, portanto, ideologicamente, denunciado e contestado.
Aparentemente mais cruel na cidade do que no campo, a
discriminação racial leva o protagonista a experimentar a adesão ao mito do
eterno retorno:
“Suspirou pela vida primitiva e quis fugir” (G.p. 21). O
desejo de regressar à terra de origem (senzala) nasce do facto de Godido ter
começado a compreender a ordem social
em sua volta: marcada pelo conflito branco/negro. Afinal, ordem essa idêntica a
que deixou no campo:
“Godido detestava aquela vida (...) Não, não! Odiava
aquela vida rastejante, a imagem do branco a esquartejar a sua mãe física e
moralmente” (G. P. 20). Acompanhando‑o de perto e com a confiança que lhe
proporciona a instauração da focalização interna, o narrador penetra na
interioridade de Godido e busca matérias sugestivamente ideológicas. É o que
justifica o recurso ao discurso valorativo, caracteristicamente avaliativo e,
por isso, empregue na “atribuição de qualidades ou defeitos, valor ou demérito
aos factos e personagens[81]”: termos
qualificativos como rastejante, esquartejar, detestava, odiava remetem
para um quadro triste da interioridade da personagem central, resultante da
brutalidade do branco.
Facto curioso é que da visão predominantemente
protestatária, o herói adquire paulatinamente a consciência de pertença a um
espaço com o qual se identifica:
“ - Eh! Zafania! Buya, venha brincari co gente, a cantari
cosa do nosso terra. Anda cá quando não minha coração zanga cum você. Mesmo!”
(G. P. 24)
“O Natal assemelhava-se ao lobolo. Não. Faltava
<<tombazana>>, e só havia comida e vinho como no
<<lobolo>>. Mas o Natal lembrava-lhe o <<lobolo>>” (G.
p. 25)
Quer na passagem dialógica, quer na semi-monológica,
proliferam termos específicos de um espaço também específico, reclamado: bya,
lobolo, tombazana. Semelhante efeito produz o registo linguístico precário
de Godido, propositadamente permitido pelo narrador: cosa do nosso terra;
brincarri co gente cum você. Mesmo. Por outro lado, num esforço notável de
representar fielmente a interioridade da personagem focalizadora, o narrador abre espaço para um registo sem-monologado,
ao abrigo do qual desloca o
sentido pragmático da festa do Natal − urna cerimónia de elevado valor
na cultura e tradição ocidentais ‑ para o lobolo, também cerimónia de
valor reconhecido, porém na cultura e tradição moçambicanas. Trata- -se, portanto, de um procedimento
intencional, da personagem e também do narrador de representar positivamente o
espaço cultural e tradicionais locais. Referindo-se a manifestações similares,
Russel G. Hamilton afirma que a exaltação de valores nacionais reflecte uma
forte dose de nativismo[82]. E como
que a reforçar o discurso exaltativo, o narrador recorre parodia o espaço
cultural europeu:
“Os patrões costumavam contar muito a história do
«mufana» branco que nascia todos os anos naquela data, e havia de tornar bons
os que nele acreditassem” (G. p. 25).
Apesar da insistência dos patrões em promover a imagem de
Jesus Cristo, contando muito a sua história, para pôr doida a “a maior parte da
gente não o percebia; confundia‑o com pedaços de gesso e arte, que havia nas igrejas. Mesmo entre
pessoas cultas, poucas o entendiam. Eram os burros que lhe chegavam mais
frequentemente porque não precisavam de compreendê-lo; [Jesus Cristo] tinha a
mania do jogo de cabra-cega. E se calhar não tinha nada. Porque talvez uns
sujeitos brincalhões o inventassem humanidade” (G. p. 25).
Desde os qualificativos mania e brincalhões, ao
adjectivo doida, passando pelo sentido de uma certa artificialidade
conotada pela forma verbal inventar, denota‑se uma progressiva
dessacralização da imagem de Cristo criador de harmonia para a humanidade. Com
efeito, este papel de criador é substituído pelo de endoidecedor.
Detendo‑se aos movimentos da personagem focalizadora, o
narrador atenta nos acontecimentos susceptíveis a uma abordagem ideológica. Tal
sucede, por exemplo, quando Godido enfrenta outras personagens como o revisor
Aguiar, o senhor Antunes, o revisor quase homem:
“O senhor Aguiar está em todos os caminhos dos pretos a
mandá‑los marcar passo ou fazer meia volta e galgar para sua condição de
escravos” (G. p. 30).
Recorrendo à hipérbole está em todos os caminhos dos
negros, o narrador refere‑se à
acção condenável de perseguição implacável aos negros. Os vocábulos mandar e
escravos traduzem a linguagem do sistema colonial, cuja contestação
enforma a ideologia ainda na sua forma utópica. Portanto, a temática da
contestação – fonte das irrupções ideológicas nos textos em análise – também se
desenvolve sob a forma de denúncia de práticas conotadas com o sistema
colonial: mandante/mandado, patrão/empregado. No mesmo diapasão, Antunes,
devido ao racismo e violência, causa antipatia a Godido:
“Suca negra! Cadela! Safa‑te quanto antes. Sua...; ... quase lhe amassou os seios com a manivela
do automóvel” (G. p. 32).Todavia, a consciência cada vez mais sólida de Godido
alarga-lhe a visão do mundo. Isto é, começa a compreender que o racismo –
principal causa da sua crise existencial – é uma criação e que por isso urge
eliminá-lo:
“Aquelas cenas gotejando vingança formavam uma massa
pastosa que estaria em todos os negros e se tornaria rocha onde o senhor Aguiar
se quebraria. A rocha era também o revisor quase homem” (G. p. 30).
Se bem que o narrador interfira sempre na subjectividade
da personagem focalizadora, momentos há em que essa interferência cessa. Isso acontece, por exemplo, no excerto Sonho de Negro:
“Godido estoirava raiva, a dois metros, por trás do
eucalipto; e, quando Antunes ergueu de novo a manivela, o negro [Godido] atirou‑se.
Como música de fundo, gritos de mulher e homem à mistura;
nos bastidores a negralhada hirta, embasbacada, a ver. O corpo sujo da negra
ali defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam.
O corpo sem vida atirou‑o ao acaso, para o automóvel, (G.
p. 33).
Repartida entre a focalização interna e externa[83], esta
passagem representa o desejo (sonho) de Godido em ver abolido o sistema, ora
contestado. Com efeito, a subjectividade onírica de Godido não se limita apenas
no ódio − estoirava raiva − , mas também na prática de uma acção
concreta, que porá fim ao sistema colonial: o corpo sujo da negra ali
defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam; o corpo sem vida,
atirou‑o ao acaso, para o automóvel. Se se tomar este cenário como demonstração
de uma acção de luta ganha por Godido, pode-se afirmar que ele antevê um
equilíbrio social, isto é, um modus vivendi sem desigualdade económica,
social nem racial, no dizer de Manuel Ferreira:
“Amanhã não haveria negros. Só HOMENS por toda a parte”
(G. p. 34).
A hipérbole por toda a parte, por um lado, os
caracteres maiúsculos na palavra HOMENS, por outro lado, acentuam a
ausência de discriminação, num futuro breve, enunciado pelo advérbio temporal Amanhã,
que, ao mesmo tempo funciona simbolicamente como utopia ideológica da
personagem central.
Se bem que esteja fora de dúvidas que, enquanto detentor
da facalização que orienta a representação narrativa, Godido beneficia de
condições privilegiadas para manifestar a sua subjectividade, isso não
significa que as outras personagens, com as quais actua, assumem uma posição de
neutralidade. Pelo contrário, elas manifestam, também, a sua subjectividade,
embora modestamente:
Godido não percebia aquela atitude e interrogava os
patrões.
− Porque és negro e de negro não passas − respondiam‑lhe
eles com sorrisos (G. p. 21).
A resposta zombeteira dos patrões − respondiam‑lhe com
sorrisos − revela a insignificância de Godido, e das respectivas
inquietações, na óptica dos patrões, interessados em manter a ordem social de
segregacionista.
A análise de segmentos textuais, à luz da focalização
interna de Godido, permitiu-nos examinar a sua subjectividade. E concluímos que
a cosmovisão de Godido foi progressivamente ganhando solidez. Com efeito, na
fase derradeira da acção, Godido, põe em causa o sistema colonial em si, não o
aspecto particular da discriminação racial, embora fortemente marcado no
texto.
Como referimos atrás, em Portagem, uma personagem
destaca-se: João Xilim. Funciona como o ponto cardeal por onde passam os
vectores que configuram funcionalmente as outras personagens[84].
Atravessado por problemas de ordem existencial, como por exemplo, a indefinição
da sua raça e a consequente rejeição social, João Xilim encontra na fuga
a solução para todos os seus problemas. Com efeito, desencadeia um ciclo de aventuras
atribuladas. O conteúdo de Portagem, lembrando Lukács, está nessas
aventuras. Face a este aspecto, a focalização interna de João Xilim atrai a
nossa análise, pois Xilim é a personagem detentora do controlo da história, e,
por conseguinte, fonte importante do foco de irrupções ideológicas.
Vivendo num contexto social marcado por relações
dicotómicas branco/negro (mulato), patrão/empregado, explorador/explorado,
mandatário/mandatado, rico/pobre, João Xilim mostra‑se, desde cedo, preocupado
em examinar e compreender a sua identidade racial: “Porquê eu não sou preto como toda a gente?” (p. 21).
Confrontado com o cenário que explicaria a sua origem
racial (E João Xilim descobriu que a mulher que estava com o patrão Campos era
a negra Kati, sua mãe), João Xilim assume uma atitude de irreverência para com
o meio que o envolve: “Murmurava raivosamente de vez em quando: −Deixa estar
que eu hei-de ser homem!... A descoberta da sua origem racial −
filho de pai branco (Campos) e mãe negra (Kati) − leva-o a abandonar Marandal, sua terra de
origem, fugindo para “onde ninguém o conhecesse nem pudesse saber a sua
vergonha” (p. 24). Facto importante, do ponto de vista da comparação, é que
cenário similar acontece em Godido. A personagem principal, Godido,
decide ir conhecer a cidade por se opor à vida da senzala, onde nasceu:
“barranco a mandá e os preto como boi a puxá, a simiá até fim” (G . p. 20) . Odiava aquela vida
rastejante (G. p. 21).
À medida que João Xilim conhece mais e diversos espaços
sociais, a sua cosmovisão amplia-se:
“Embarcou como moço de limpeza num cargueiro que se
destinava a um porto do sul. Ali deram‑lhe licença para desembarcar e viu os
seus irmãos mulatos e negros que trabalhavam no cais e nas fábricas e eram tão
subtraídos à civilização como os negros do Marandal. Viu os seus irmãos mulatos
e negros que imitavam os brancos no vestuário, na linguagem e nos
costumes. Viu os seus irmãos
negros contratados para irem trabalhar nas minas no outro lado da fronteira.
Viu os homens brancos que moravam nos arredores da cidade em companhia de
mulheres negras e andavam fazendo filhos mulatos para crescerem proscritos
entre brancos e negros. Viu os homens brancos que viviam em casas bonitas e se
deslocavam de automóvel e tinham todas as comodidades. Viu brancos que eram
compreensivos e não se pareciam com patrão Campos. Viu os grandes navios no
cais carregando mercadorias e embarcando gente para terras desconhecidas. E viu
que o menino do Marandal estava ainda crescendo para ser um homem sem lugar
próprio na sua terra, porque fugira do Marandal e era filho da negra Kati que
se entregara ao patrão Campos e fora moleque da menina Maria Helena. E o mulato
continuava a precisar de fugir” (p. 26).
O valor semântico do verbo “ver” (presenciar), o tempo
gramatical pretérito perfeito: (consumação dos factos) confirmam o contacto
directo e factual de João Xilim com o cenário das desigualdades sociais.
Portanto, produzido a partir das rememorações da personagem, ao abrigo da
instauração da sua focalização interna, o segmento em apreço reflecte, do ponto
de vista da ideologia, a percepção, por João Xilim, desse cenário, graças ao
alargamento da sua visão do mundo. Porém, por vezes, à semelhança do que
referimos em relação a Godido, essa visão se submete às frequentes
opiniões do narrador. Este, para além das qualidades que o distinguem do herói,
leva a vantagem de ser entidade única responsável pela organização e
modelização do universo diegético. Portanto, mesmo o discurso das personagens
(quer sob a forma de diálogo, quer sob a forma de monólogo) está inserido no
discurso do narrador[85].
Referimos, acima, ao amadurecimento da cosmovisão de João
Xilim. É, pois, à luz da mesma cosmovisão que se explicam determinadas acções e
reacções da personagem principal, nomeadamente, a revolta contra a “nova
tentativa de exploração dos negros da sua terra” (p. 32); o acto violento
contra o mulato engajador (p. 32) e contra o chaveiro prisional (p.76). O mesmo
sucede quando, ao abrigo da sua focalização, o protagonista enfrenta determinados
ambientes, eventos e personagens. Isso transparece, por exemplo, quando João
Xilim censura as condições de trabalho nas minas de Kaniamato:
“Kaniamato, 10 de Fevereiro
Meu amigo eu escrevo estas linhas para dizer que tou aqui (...) a vida aqui é boa mas cada vez estes gajos só
quer tirar as forças dos nossus corpo para fazeri o grande dinheiro deles á
aqui mesmo grande zatice. (...) Teu amigo que manda muito abraço João Xilim”
(P. 55)
Não obstante a impressão positiva (vida boa) que teve de
Kaniamato, João Xilim insurge‑se contra os desequilíbrios naquele local: (à
aqui grande zatice).
Certas personagens, contempladas pela focalização interna
do protagonista, despertam neste um sentimento de simpatia ou de antipatia,
conforme as motivações ideológicas subjacentes à subjectividade de cada uma.
Assim, perante personagens como a avó Alima (João Xilim sente remorsos de não
ter feito mais companhia à avó que para ele agora representa um símbolo, p.15),
Juza (O juza é bondoso mas não vai perdoar, p.134) cujo temperamento não é
adverso ao seu, João Xilim manifesta
alguma simpatia, expressa através
do uso dos termos qualificativos símbolo e bondoso. No entanto,
as personagens de orientação ideológica adversa à do protagonista mantêm com
este uma relação de antipatia. Tal é o que se verifica nos exemplos seguintes:
“Que se lembre [João Xilim] nunca falara com patrão
Campos. Receara‑o sempre, fugindo à sua presença” (p. 38).
Acentuada pelo recurso à linguagem prototípica
patrão/empregado, a polaridade entre João Xilim e o branco Campos (seu pai)
marcou toda a existência de ambos. Será, certamente, na sequência disso que
“João Xilim sente que o morto (pai) o repudiaria como em vida sempre o renegara
“e“ fica nauseado” (p. 39).
Por seu turno, aproveitando‑se da “vantagem racial”, o
branco Borges abusa as mulheres mulatas, (cf. pp.134 e 149). Procedimentos
desta natureza representam uma afronta para João Xilim. Aspecto assinalável
desse facto é que o narrador, fiel à personagem focalizadora, adere
incondicionalmente à subjectividade desta: “O Coxo [Borges] não tem nada que se lhe aproveite a não ser a
lábia para a envaidecer...” (p. 134). O qualificativo coxo, transformado
em nome, a conotação negativa sugerida pelo termo lábia configuram a
imagem desqualificada de Borges, diante da subjectividade da personagem
principal, corroborada, como dissemos pelo narrador. Outras persongens
que, à semelhança de Campos e Borges, não merecem a simpatia da personagem
central são: 1) o cantineiro Esteves: “... regressara [João Xilim] à cidade
para se vingar do dono da casa do Caju” (p. 79)
; 2) Abel Matias: “[João achava
aquele tipo [Abel Matias]
esquisito” (p. 123); 3) o mulato claro que andou no liceu: “ vocês não acredita neste mulato gingado! Vida dele é de branco! Vida
da gente é de negro!” (p. 112). Palavras como esquisito, vingar, gingado, afloradas de desprezo e ódio, espelham a aversão de Xilim
pelas personagens descritas.
Dissemos, em Godido, que a par da personagem focalizadora gozar de uma posição privilegiada, para registar a
sua subjectividade no discurso do narrador, desfila a subjectividade das
personagens sem função focalizadora. Ora, situação similar ocorre em Portagem.
Por um lado, figuram personagens cuja subjectividade adere à da personagem
focalizadora:
“Esse homem [João Xilim] que aí está sentado, é um homem
de cor, nascido da fusão de duas raças que, quantas vezes, igualmente o
desprezam. Sei que, só por esse motivo, mereceu a antipatia de muita gente” (p.
64).
“... mas a grande culpa não foi dele [João Xilim]. Foi
daquela desgraça de nascer mulato” (P. p. 67).
Como se pode ver, as intervenções do Dr. Ramires
(primeira transcrição) e de Rafael (segunda) imputam a sinuosidade da
trajectória de Xilim à discriminação racial.
Por outro lado, perfilam
personagens cuja subjectividade desafia a da personagem focalizadora:
“Este moleque parece-me esperto demais. Além disso, é
mulato. E, não gosto nada desta raça. São mais falsos que os pretos” (p. 17).
“... e você que é, então? Filho desse branco que anda a
explorar os homens da sua terra” (p.
32).
“Alguns negros sentem um certo rancor contra João Xilim.
E fazem surdamente, alusão à ignomínia da sua cor mestiça a que atribuem a
possibilidade de todas as cobardias e traições” (p. 33).
“... o morto o repudiaria como em vida sempre o renegara”
(p. 39)
“Não sujo as minhas mãos nas ventas de um mulato” (p.73)
“Pretos ou brancos é que deviam ali estar, bem definidos
nas suas origens, o mulato representa para ele, um elemento duvidoso...” (p.
74)
Uma vez mais, o discurso valorativo domina a
representação da subjectividade das personagens. São os casos, por exemplo, dos
termos falsos, branco, cobardias, traições, mulato, renegara, duvidoso, todos atingindo, depreciativamente, a
personagem focalizadora, João Xilim. Como bem se nota, a aversão por esta personagem, devido ao estigma racial, não se
restringe apenas aos brancos, abarca também os negros e os mulatos. Trata-se de
um fenómeno reconhecido pela própria personagem Principal: Nossa raça toda a
gente passa de lado (p. 53).
Um dado que, do ponto de vista ideológico, reputamos importante nas relações
quer de simpatia, quer de antipatia com João Xilim, é de elas estarem vazados
no elemento raça: mulato, ou seja, resultado de duas raças puras: a branca e a
negra. Este facto faz que João Xilim se sinta condenado à rejeição social, e
por isso, sujeito a um percurso atribulado. Enfim, é uma situação que o leva a
ter “medo de ver alegria” (p. 107). Portanto, em alguns instantes da narrativa,
Xilim tende ao conformismo irónico:
“Mal de mim é ser mulato. Nossa raça toda a gente passa
de lado (…). Branco está sempre a pensar que mulato é filho dum crime. E eu
também estou quase a pensar que talvez é mesmo” (p. 53)
Nesta passagem de pura manifestação de subjectividade do
protagonista de Portagem,
retomando a linha de comparação, destaca-se a forma peculiar como João Xilim
interpreta o quadro social que o cerca. Com efeito, enquanto Godido prevê o uso
de uma força para inverter o rumo das coisas, João Xilim concentra-se apenas na
denúncia/contestação do sistema em voga, ora culpabilizando-se: “mal de mim é
mulato” (p. 53); ora, simulando uma hesitante adesão à visão colonial: “Branco está sempre a pensar que mulato é
filho dum crime. E eu também estou quase a pensar que talvez é mesmo” (p. 53).
Quer a ironia definitória (emprego do presente do indicativo é), quer
a atitude vacilante (propiciada pelo recurso aos termos quase e talvez,
do discurso modalizante), sublinham o
sentido escarninho dessa adesão. Trata-se de, através de uma estratégia
de reiteração, denunciar e contestar a discriminação racial, cristalizada e
estereotipada, nos anos 50, no Moçambique colonial.
Ainda no contexto do discurso contestatário, pela via da
reiteração da sua raça, João Xilim interpreta a irresistibilidade de
Luisa (sua esposa) e de Beatriz, perante as atracções do branco, como uma
consequência directa do seu traço racial, o responsável de todos os males: “ −
Mulata é assim mesmo: olhar de branco, levanta as saias; palavra bonita de
branco com uma prenda na mão, abre as pernas” (p.134).
O verbo ser no presente do indicativo é e o
vocábulo de realce mesmo transportam o sentido inabalável da visão de
Xilim, no respeitante à raça mulata.
A leviandade, por exemplo, expressa pela sequência metafórica (discurso
figurado) “levanta as saias” e “abre pernas” deve‑se ao defeito da raça mulata.
A contestação do sistema colonial através do apego irónico à origem racial prolifera em quase todo o texto, constituindo,
portanto, uma característica peculiar da personagem central. Facto evidenciável
é que, ao invés do que se verifica em Godido, o protagonista em Portagem,
embora também tutelado, goza de significativa autonomia, diante da
imponência do narrador. Isso ocorre com regular frequência nas rememorações dos
pedaços da sua vida:
“E recorda‑se que fora naquele verão que se apercebera de
uma realidade que viera a marcá‑lo do ventre da sua mãe. Ele não era negro como
a outra gente nascida no Marandal (p. 21); E recorda‑se num instante de tudo o
que ficou para trás. De patrão Campos, embrulhado com mãe Kati (..,); de Maria
Helena, impondo‑lhe o exílio; do fogueiro Jaime, chorando a infância insultada;
de Luisa e do cantineiro, apertados num abraço que o atraiçoou; do Dr. Ramires,
falando no tribunal da infelicidade dos mulatos
desde a barriga da mãe”
(p.70); “ Mas a sua vida não tem nada
que contar aos outros, a não ser que um branco destruiu a alegria da sua
infância, que andou embarcado” (p.106);
“Todas as raivas da sua vida passam‑lhe uma a uma, pela
memória. Não, não tem nada que se arrepender. Cumpriu fielmente seu destino.
Foi sempre ele, o mulato, um homem clandestino na barriga da mãe, moleque em
casa de D. Laura, menino da infância de Maria Helena, testemunha do abraço da
negra Kati e de patrão Campos, capataz da mina do Marandal, amante ilegítimo,
emigrante sem passaporte, número extra dos sentenciados negros, contrabandista,
vingador despercebido” (p. 160).
Na transcrição destes segmentos textuais longos,
moveu-nos o interesse de ilustrar alguns dos vários momentos do passado do
protagonista, contínua e escrupulosamente rememorados. O narrador
representa-os, seleccionando um vocabulário específico não só para revelar o
passado interior da personagem central, mas também para exprimir determinados
posicionamentos ideológicos. Estes repartem-se entre a subjectividade da
personagem e do próprio narrador. Por exemplo, expressões como: “não era negro
como a outra gente...; infelicidade dos mulatos desde a barriga da mãe; mulato;
clandestino, remetem ao atribulado destino, marcado pelo traço racial − esse
preconceito geneticamente examinado, como afirma, em tom sarcástico, Carmen
Lídia de Sousa Dias.
Afinal, como temos vindo a vincar, a ideologia do herói
assenta no conflito de raças, apesar de nalguns momentos a personagem parecer
indiferente a isso:
“Não, não tem que se arrepender. Cumpriu fielmente com o
seu destino” (p.160).
Com os advérbios de negação não e de modo fielmente
(discurso valorativo), o narrador representa um Xilim aparentemente tranquilo e
conformado com o seu destino. Mas, mais do que uma aparência, depreende‑se, nos
momentos finais da história, a seriedade com que João Xilim encara a questão de
raça:
“O erro fundamental, que comprometeu a paz da sua vida,
foi o abraço da mãe Kati e de Patrão Campos, esse abraço que fez um ser duma
raça nova infamada. Tudo o que se passou depois, o que pesou sobre o seu
coração e manchou as suas mãos e os seus olhos proveio desse erro. Por toda a
parte ele encontrou gente que anda à toa, rejeitada pelos brancos e pelos
negros. Deserdada pelas duas raças puras” (p.160).
Da referência à origem da raça mulata, pela expressão
eufémica abraço da mãe Kati e de patrão Campos, à alusão aos efeitos
fúteis dessa raça nova, infamada, gente [mulata] (...) rejeitada
pelos brancos e pelos negros; deserdada pelas duas raças puras, o narrador
representa a auto‑análise interior de João Xilim. Deste acto denota‑se a
intenção em tomar a origem racial por todas as atribulações que marcaram toda a
sua existência. Portanto, reforça- -se a tese de que João
Xilim se opõe à prática colonial de discriminação racial, reiterando‑a. Aliás,
é significativo o facto de ser no fim da história que se define, de forma menos
ambígua, o objectivo que norteia a acção do herói, ainda que seja uma definição
contaminada pela subjectividade do narrador, cuja função de assessor sempre
preservou:
“Mas ele esconderá dos filhos a memória dos pecados das
negras Katis e dos patrões Campos. E eles crescerão como se a raça mestiça não
tivesse nascido de um abraço fortuito” (P. p. 160).
Transparece, nesta passagem da subjectividade de João
Xilim, a visão utópica, remetente a de um quadro social sem discriminação, que
passará necessariamente pela ruptura da ordem existente, a do sistema colonial.
Ruptura essa visionada na intimidade misturada com paixão secreta entre o
mulato João Xilim e a branca Maria Helena:
“Quase ao mesmo tempo, a
menina [Maria Helena] e o moleque [João Xilim] tiveram a intuição de que
se sentiam um ao outro como promessa de mulher e homem (...). Se, por acaso, se
tocavam, ficavam enleados e suspensos” (P. p. 18).
E, distantes um do outro, essa paixão transforma-se em
saudade: “... Começara a doer‑lhe a saudade de Maria Helena. Por toda a parte e
por todo o momento, a sua lembrança o perturbava (...). Mesmo que não visse a
menina, estaria mais perto dela, encostaria a cara ao vidro da janela do seu
quarto e tinha a certeza de que seria capaz de ouvir bater o coração dela” (P.
p. 18‑19).
Do ponto de vista ideológico, a relação de intimidade
entre Maria Helena e João Xilim satiriza uma das principais facetas da
ideologia colonial: a discriminação racial. Aliás, aquela, tal como Xilim, deplora
a segregação racial: − Desculpem-me, não pensei que a vossa misericordiosa
missão distinguisse raças... (P. p. 93). Por outro lado, levada ao extremo
quando ambos se envolvem num acto sexual, no sétimo capítulo da obra, essa
relação pode ser interpretada como um indício de uma síntese futura de ambas as
raças. A síntese que consubstancia a visão utópica não racial, quer de
João Xilim, quer de Godido, como referimos nas páginas anteriores deste texto.
Em função da análise do discurso produzido sob a orientação
da focalizacão interna, apurámos que, em Godido e em Portagem, as personagens principais comungam a mesma
linha ideológica: utopia não racial, ou seja, clamam pela abolição do
sistema colonial de discriminação.
A focaliziação omnisciente e a ideologia do narrador
Consagrada e difundida por narratologistas, a expressão
focalização omnisciente designa, tomando por empréstimo os termos de M. Bal, a
opção de o narrador de se auto-indigitar para desempenhar a função de
focalizador. Portanto, adoptando a focalização omnisciente, “o narrador
configura‑se como um autêntico demiurgo que conhece todos os acontecimentos na
sua trama profunda e nos seus pormenores, que sabe toda a história da vida das
personagens, que penetra no âmago das consciências como em todos os meandros e
segredos da organização social[86]. Isto
equivale a dizer que o narrador omnisciente detém um conhecimento ilimitado da
história. Opondo‑se a esta
posição, Genette não inclui, na sua conceptualização, a modalidade de
focalização omnisciente. Para o autor de Figures III, a «omnisciência» é um
termo “qui, en fiction pure, est littéralement, absurde (sublinhado nosso). Ao invés da omnisciência do narrador,
Genette adopta as noções de “narrativa de focalização zero” e “narrativa não
focalizada”. Qualquer uma destas veda ao narrador a função de focalizador.
Deste modo, este não está habilitado a assumir a posição de transcendência em
relação à história que conta. Não obstante a objecção de Genette, o termo
focalização omnisciente, decorrente da noção de narrador omnisciente[87] em uso
na crítica anglo‑saxónica, mantém‑se aceite em narratologia. Aceite porque,
apesar de rejeitadas por Genette, a sua funcionalidade na sintaxe narrativa tem
sido atestada. Com efeito, a focalização omnisciente tem o mérito de permitir a
facultação de informações que, na óptica do narrador, são pertinentes para o
conhecimento minudente da história[88]. Assim,
ao abrigo da focalização omnisciente, o narrador, quer em Godido, quer em Portagem, intervém com informações, que
julga necessárias para tornar o discurso claro e compreensível[89]. São,
pois, as informações doadas graças à instauração da focalização omnisciente o
principal objecto de análise, nesta parte.
É assim que o narrador em Godido, demonstrando
profundo conhecimento do ambiente diegético, descreve com rigor minucioso a
paisagem externa, bem como o cenário marcado pelo nascimento da personagem
central, Godido:
“Uma noite escura
como todas as noites em que não há batuque nem mulheres na senzala. Na sua
palhota, à luz mortiça de um candeeiro de óleo de coco, um corpo espreme‑se
em contorções nervosas. A natureza verifica mais uma vez a lei de Lavoiseir:
nada se está criando; é uma transformação da qual resulta Godido” (G. p. 19).
O apelo ao discurso figurado, através da colocação
comparativa noite escura com todas as
noites em que não há batuque nem mulheres na Senzala, resulta da intenção do narrador em descrever o ambiente
sórdido e triste que acolhe o nascimento Godido. Ambiente que, visto como
decorrente de um discurso profético, funciona como indício de uma vida
repugnante de Godido:
“Tomara desde logo aquele sabor a carvão e cozinha. Ah!
Maldita hora! Fora um caso acidental. O vento arrastara‑o e a curiosidade
também. Agora, paciência. Era viver camuflado a vida inteira como os carros de
assalto, e propagar o mal aos seus descendentes. Verdade, verdadinha que ser da
cor do carvão era uma tragédia. Mas as consequências daquela imprevidência
manifestar‑se‑iam mais tarde (G. p.19).
Activando os seus hiper‑conhecimentos, o narrador
omnisciente caracteriza o protagonista, realçando-lhe os traços negativos: tomara
(...) sabor a carvão e
cozinha, ao mesmo tempo que traça a sua sina: viver camuflado; propagar
o mal aos seus descendentes. A associação, no mesmo segmento dos discursos
conotativo: ... sabor a carvão, valorativo:
... maldita hora; ... caso acidental;
... viver camuflado; ... propagar o mal; ...era uma tragédia;... daquela
imprevidência e figurado: camuflado como os carros de assalto (comparação);
ser da cor do carvão (metáfora), ilustra claramente consciência do
narrador, sensível ao mal ao desprezo a que o negro está sujeito. Esta
consciência do narrador aproxima-o, em termos ideológicos, à personagem
central, cuja motivação ideológica visa abolir o sistema colonial. Parece,
pois, ser na sequência dessa comunhão ideológica que o narrador sofre com
o protagonista, quer quando o representando a partir da sua perspectiva
(focalização interna), quer quando se lhe refere as características físicas e
psicológicas, bem como os actos, recorrendo
à focalização omnisciente:
“Um pedaço de carvão ardendo em uma mentalidade ávida de
justiça. Ódio à civilizações tidas por superiores por nela esconder qualquer
coisa de nefasto. Eis a imagem duma raça: Godido” (G. p. 19).
Através de uma analepse, relato por antecipação de
eventos cuja ocorrência na história é posterior ao presente da acção, o
narrador extrai da subjectividade de Godido uma consciência virada vincada pelo
desejo de ruptura da ordem vigente, a das civilizações tidas por superiores...
Portanto, a mentalidade ávida de justiça nasce dessa consciência, dessa
nova visão da realidade circundante:
“Godido pediu compaixão, um pouco de humanidade. Que
pavor! E os céus não desmaiaram sobre a terra?! O negro queria emancipar‑se;
não era outra coisa. Coitado! Ele a pedir liberdade! Ele que nascera livre nas
costas da mãe, que nascera e vivera na escravatura, pedia a graça de
<<dominus>> e chamavam-no um revoltado, inflamado de ideias
enciclopedistas. Não sabia ler nem conhecia de vista a metafísica mas era
partidário de Diderot. Não havia dúvidas; os civilizados já o tinham dito. Era
qualquer coisa que ele, Godido desconhecia. Mas era‑o” (G. p. 22)
As expressões que pavor!; coitado (discurso valorativo), marcados
pelo sinal exclamativo, traduzem a afectividade do narrador pela personagem
central. Com efeito, na passagem textual acima transcrita, o narrador sob a
orientação da focalização omnisciente, evoca os seus conhecimentos ilimitados
para resumir a vida do protagonista. Não se coibindo, contudo, de manifestar a
sua subjectividade. Tal atesta-se quando o doador do discurso resume a vida
inteira de Godido à escravatura, ou quando exibe o campo dos seus conhecimentos
científico-
-filosóficos, ao fazer alusão à metafísica, a Diderot, para
se compadecer com o protagonista. Este, afinal, surge representado
positivamente, como ilustra o adjectivo carnudo e o advérbio de modo estrondosamente
(discurso valorativo), empregues para caracterizar os lábios de Godido (G. p.
22).
As afinidades ideológicas entre o narrador e a personagem
central afirmam‑se também naqueles momentos em que a focalização omnisciente orienta
a representação de outras personagens:
“A família Santos não vivia como as grandes massas
miseráveis nem com as comodidades de Henri Ford. Era daquelas famílias
condenadas a não ficar na História. Um grupo a equilibrar‑se nas cordas da
economia. Escudos certos, para despesas certas os meses. Uma ou outra
extravagância na lotaria a tentar a sorte. Não se liam jornais nem livros, que
o papel estava caro e não compensava. Sopa e guisado, alternando com guisado e
sopa do almoço para o jantar. Pão, muito pão, e... batatas”.
(G. p. 23).
Como referimos no sub‑capítulo anterior a este, Santos e
a família representam, no quadro social da diegese, o segmento ideológico
colonial, em cuja ruptura assentam as motivações ideológicas do protagonista e
do narrador. Nessa ordem de ideias, o narrador, ao se referir à família Santos,
detém-se em pormenores descritivos, com certo impacto desqualificador, como a
debilidade económica, sugerida pelo recurso ao discurso figurado, ou seja:
conotação: era daquelas famílias a não ficar na História, ou, quiasmo:
sopa e guisado, alternando com guisado e sopa do almoço para o jantar, ou
ainda, repetição quantificada: pão, muito pão.
Fernando é outra personagem que, devido a sua posição
hostil contra os negros, a quem o narrador caracteriza depreciativamente:
“Arreia-lhe, pá! Uma nos queixos! −
Dizia o Fernando, escondido na sua fragilidade raquítica” (G. p. 27).
Aproveitando-se da situação de diálogo das personagens, o
narrador emite o seu juízo de valor sobre Fernando: desde o vocábulo escondido,
que encerra uma mistura de medo e cobardia, até às expressões depreciativas fragilidade
e raquítica, o narrador demonstra a sua antipatia pela referida
personagem.
Mas a posição ideológica do narrador não se define apenas
nos casos em que a sua subjectividade se confronta com personagens
ideologicamente adversas. Define‑se também quando enfrenta personagens
secundárias com as quais comunga a linha ideológica:
“A meio da viagem um branco fardado entrou na carruagem
dos negros. Era um rapaz novo fortemente moreno, quase celestial no seu olhar
vago, vindo lá de um Brasil de humanidade sem ter vivido nas cidades norte‑americanas
nem conhecido os desconcertos da Índia ou da África do senhor Smuts. Parecia no
racismo a pureza virginal de um selvagem ante os «Lusíadas»” (G. p. 28).
Ao traçar um retracto físico‑psicológico positivo do revisor
quase homem: novo fortemente moreno; quase ceIestia1 no seu
olhar; Parecia no racismo a pureza virginal de um selvagem ante os
«Lusíadas», o narrador revela parte da sua subjectividade, desta feita,
favorável a uma ideologia multirracial.
No entanto, o traço racial marca fortemente a
subjectividade do narrador, no contacto com a diegese:
“[O revisor quase homem] revisava os bilhetes
abstractamente e escorria tanta simpatia que a negralhada ficou-se numa
interrogação, tinha vinte anos e o seu único pecado era a pele branca de
tirano” (G. p. 29).
O narrador constrói uma imagem positiva do revisor quase
homem, segundo ilustram as expressões avaliativas abstractamente e escorria tanta simpatia. Porém, opõe-se à
sua raça, caracterizando-a com termos disfóricos, como pecado e tirano.
O aparente paradoxo na atitude do narrador encontra
justificação no facto de, historicamente, o sistema colonial ter sido
implantado pelos europeus, como estratégia de dominação. Portanto, o racismo de
que frequentemente se suporta funciona como uma invenção ideológica.
Adoptando a focalização omnisciente, o narrador em
Portagem dispõe de um campo aberto para evocar os seus conhecimentos ilimitados
sobre a história. Deste modo, relatando a estreia da personagem central na vida
laboral, o narrador insurge‑se não só contra o trabalho infantil, mas também
contra a própria ocupação laboral:
“Também ele começou, como os outros meninos da sua idade,
por acarretar numa padiola, o carvão mais miúdo (...). Mais tarde, em casa de
patrão Campos, precisaram de um moleque e escolheram-no a ele (...).
Proibiram-no de ir brincar com outros meninos da sua idade, (...) deveria ser
apenas o moleque da casa grande. Moleque das limpezas....” (P. p. 16).
Dos referentes de idade: meninos; de ordem: proibiram‑no,
deveria ser apenas reflecte‑se a censura do narrador, ao quadro que
propicia tais práticas e atitudes.
Com esse objectivo de clarificar o relato que produz, o
narrador, demonstrando os conhecimentos ilimitados que a omnisciência lhe
confere, faculta mais informações. Compara, para o efeito, João Xilim com os
negros do Marandal:
“O emigrante tornou‑se, porém, diferente dos negros do
Marandal que o procuravam à noite para ouvir da sua boca histórias das
aventuras por outras terras. Escutam assombrados a linguagem nova que tenta dar
uma interpretação diferente da vida deles. Mas não a compreendem. Às vezes, um
ou outro entende que João Xilim conheceu diversos padrões da condição humana
(...). João Xilim dói‑se dessa
incompreensão dos mineiros” (P. p.31).
O sentido de enobrecimento que assiste ao termo diferente
exprime, do ponto de vista da consciência do narrador, a sua adesão à
subjectividade do protagonista, dadas as afinidades ideológicas entre ambos.
Com efeito, fazendo apelo à sua omnisciência, o narrador realça a visão do
mundo amplo de João Xilim, resultante do contacto com diversos padrões da
condição humana: tenta dar uma interpretação diferente da vida (...). E, valendo-se ainda da focalização
omnisciente, retracta os domínios psicológicos dos negros do Marandal, que
ficam assombrados pela linguagem nova que não a compreendem e de João
Xilim, que se dói dessa incompreensão. Mas por vezes, a adesão aos ideais
do protagonista cessa, dando lugar a um discurso de repreensão: Não é que
ninguém iria compreender essas coisas mesquinhas que são a razão do cansaço da
vida toda de João Xilim? (P. p.107).
Ao abrigo da omnisciência, o narrador “invade”, sempre
que o entende, o interior das personagens secundárias:
“Maria Helena é possuída por estranhas perturbações. Teme‑as
e, ao mesmo tempo, deixa‑se penetrar por elas com um prazer sensual. O sangue
corre‑lhe nas veias caudaloso e impaciente, as têmporas batem apressadamente e
sem ritmo, os pensamentos galopam, transpõem todas as grades e evadem‑lhe o
corpo para regiões desconhecidas” (P. p. 89).
À atitude benévola que rodeia as expressões apreciativas
do discurso valorativo o sangue (...)
caudaloso e impaciente; os pensamentos
galopam subjaz a consciência do narrador, marcada pela missão de contestar
e denunciar o sistema colonial de exploraçãoe discriminação. Semelhante
consciência esboça-se no segmento de caracterização do fogueiro Jaime:
“O fogueiro Jaime tivera a sua infância num bairro
suburbano semelhante ao da casa do Caju, com uma cantina vendendo vinho aos
homens que vinham de alugar as mulheres como a mãe dele, com um cantineiro
arrecadando diariamente ou mensalmente as rendas dos quartos onde as negras embrutecidas
se deitavam com homens de todas as raças que subiam da cidade para o arrabalde
da gente de cor” (P. p. 48).
Neste breve relato do passado biográfico do fogueiro
Jaime, o narrador recorre a expressões qualificativas como embrutecidas
e suburbano para manifestar repúdio contra a vida precária da camada
vítima da discriminação, densamente constituída por mulatos e negros,
genericamente designados gente-de‑cor. A referência ao espaço (subúrbio/arrabalde); a prática de
prostituição ( ... deitavam‑se com homens de todas as raças que
subiam da cidade) remete à condição baixa dos discriminados, denunciada
pelo narrador.
Portanto, vale afirmar que em ambos os textos (Godido e
Portagem), o narrador, guiando‑se pelo código da focalização
omnisciente, fornece um caudal de informações, sobretudo, do domínio subjectivo
das personagens, bem como as relativas aos eventos e aos ambientes. É, pois,
dentro dessa missão de facultação de informações e dados necessários para a
compreensão da história, que o narrador manifesta o seu posicionamento
ideológico. Portanto, verificámos, pela segunda vez, (a primeira foi observada
na nossa abordagem em torno do estatuto do narrador), que a consciência
ideológica do narrador orienta-se no sentido de romper com ordem vigente. O que
quer dizer, pensando em Jameson, que o narrador de Godido e de Portagem
defende uma utopia não racial.
Da focalização externa a alguns subsídios ideológicos
A fórmula da focalização externa designa a situação em
que as personagens, os ambientes e os eventos são apreendidos do seu lado
exterior. Portanto, a propriedade básica da focalização externa consiste em permitir a “representação das características
superficial e materialmente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de
certas acções”[90].
O que quer dizer, por outras palavras,
que a modalidade da focalização externa não permite a representação do mundo
interior. Porém, isso não deve inculcar a ideia de que a focalização externa é
refractária à irrupção da subjectividade, pois quando combinada com outros
códigos de focalização, a modalidade da focalização externa propicia a análise
do interior de quem contempla[91]. Dando
lugar, deste modo, à irrupção de posicionamentos ideológicos, quer da
personagem focalizada (focalização interna), quer do próprio narrador, uma vez
que em focalização externa, assim o entende M. Bal, a história é contada a
partir do narrador.
A focalização externa prolifera sobretudo nos momentos de
estreia de personagens, de introdução de novos espaços, ambientes, ou de
descrição de determinados eventos. Portanto, a vigência deste tipo de
focalização denota-se mais nos segmentos descritivos. Sob a vigência da
focalização externa, o narrador descreve o momento que antecede o nascimento de
Godido:
“Anda uma escuridão de vinte e duas horas sem luar. Noite
que não se acende, negra como a vida de qualquer negro, como toda a noite sem
batuque nem mulheres, embriagadas de puto na senzala” (G. p.15).
Através do discurso figurado: escuridão sem lua (pleonasmo),
noite negra como a vida de qualquer negro (comparação), o narrador
desenha, sob a forma de protesto, o quadro triste do quotidiano do negro da
senzala.
Agindo ao limite da observação do exterior, condicionada
pela instauração da focalização externa, o narrador descreve o protagonista no
interior de um espaço prisional:
“Porque estaria ele ali, amarrado à imundície de um
quarto que é um curral, sem uma esteira onde deitar o corpo e com o chicote do
carcereiro a cortar‑lhe os gritos e a garganta? A sua cama é chão gelado de
cimento. De tempos a tempos, a horas determinadas, as fechaduras castanhas
rangem sobre si próprias, deixando passar um cheiro a bofe e papas” (G. p. 19).
Baseando‑se na observação directa, o narrador emite
opiniões judicativas sobre Godido e sobre o recinto prisional onde jaze, ao
mesmo tempo que se compadece do infortúnio daquele. Ilucida o discurso
figurado: amarrado à imundície de um quarto que é um curral, com o chicote
do carcereiro a cortar‑lhe os gritos e a garganta (metáfora); ou o discurso
valotativo: chão gelado de cimento, fechaduras castanhas de ferrugem, cheiro
a bofe e papas.É sintomática, nesse processo de ajuizamento, o tom
condenatório do narrador, face à situação desumana imposta a Godido, personagem
com a qual partilha a perspectiva ideológica.
No excerto Sonho de Negro, combinando a focalização externa com a interna, o narrador
descreve o confronto físico entre Godido e o branco Antunes, bem como o cenário
antecedente:
“O Antunes descontrolou os nervos e quase lhe amassou os
seios com a manivela do automóvel. Sangue ou leite − um suor húmido − começou molhando‑lhe o quimono. (...) Godido estoirava raiva, a
dois metros, por trás do eucalipto; e, quando Antunes ergueu de novo a
manivela, o negro atirou‑se.
Como música de fundo, gritos de mulher e de homem à
mistura; nos bastidores a negralhada hirta, embasbacada, a ver. O corpo sujo da
negra ali defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam. (...) o corpo
sem vida atirou‑o, ao acaso, para o automóvel” (G. pp. 32-33).
Nesta compilação de segmentos textuais, partimos da
seguinte sugestão interpretativa, para deduzirmos a informação ideológica
subjacente: Antunes fere Josefa com uma manivela, o que comove Godido. Este desafia
Antunes em luta e mata‑o. Do ponto de vista temático‑ideológico, Antunes
identifica‑se com o sistema colonial, Josefa é a vítima desse sistema, que
Godido derruba, matando Antunes. Portanto, Godido afirma-se como o justiceiro a
partir do qual se consubstancia a ideologia de utopia não racial.
À semelhança de Godido,
em Portagem a
focalização externa beneficia principalmente a
personagem central. Acompanhando-a «de fora», de acordo
com a terminologia de Jean Pouilon, o
narrador relata o exteriormente observável. Não se isentando, no entanto, de registar as marcas da sua subjectividade:
“Com a pá de madeira, João Xilim faz guinar a almadia
para a ilhota no meio do rio (...). Todos os dias João Xilim vem ver o sol
esconder‑se no mesmo sítio. E, como o sol, o mulato esconde‑se também, mas da
gente da sua terra. Leva para ali, para sua ilhota do silêncio e da solidão, a
confusão dos seus sentimentos” (P. p. 15).
Interessado em manter o «mistério» sobre o protagonista[92], o
narrador não fornece, de uma vez, os dados completos de identificação de João
Xilim. Porém, combinando a focalização externa com a omnisciente, revela uma
parte significativa dessa identificação. Dessa estratégia combinatória abre‑se
espaço para se fazer alusão à subjectividade do protagonista, e do narrador.
Com efeito, Por um lado, da analogia como o sol, o mulato esconde‑se também
da gente da sua terra transparece crise existencial de João Xilim, face a
obscuridade da origem da sua raça. Por outro lado, com as expressões ilhota
do silêncio e da solidão; a confusão dos seus sentimentos o narrador tenta
representar fielmente o estado sentimental sofrido e perturbado da personagem
central. Estado esse provocado pela descoberta da sua origem racial:
“Aproximou‑se da margem do rio onde o matagal se tornava
menos denso. Correu por entre os arbustos raros, (...). Mas um sólito ruído o
fez parar. Alguns metros adiante, a folhagem caída no chão rangia como se fosse
pisada por gente ou bicho (...). Escondeu‑se atrás dum arbusto, afastou com
cuidado as trepadeiras enoveladas e espreitou (...) e João Xilim descobriu
[viu] que a mulher que estava embrulhada com patrão Campos era a negra Kati,
sua mãe” (P. pp. 23‑24).
Os vocábulos matagal, trepadeiras enoveladas
emprestam o sentido de ocultação. Tal justifica-se pela natureza fortuita da
relação de intimidade entre Campos e Kati. E, por conseguinte, o sentido
ridículo dessa relação, lexicalmente expressa pelo termo embrulhada[93].
Na sequência da sua adesão aos vínculos ideológicos do
herói, o narrador relata-lhe algumas acções, em tom exaltativo e minucioso:
“Dá alguns passos vagarosamente e quando calcula que o
engajador terá baixado a pistola, vira‑se subitamente, arremete de um salto e
dá‑lhe uma cabeçada no estômago. O engajador cai desamparado para trás e larga
a pistola. João Xilim (...) assesta‑lhe um murro brutal no nariz. O engajador
desmaia, sangrando abundantemente” (P. p. 33).
Denota-se a preocupação do narrador em representar um
João Xilim dotado de capacidades excepcionais. Documentam-no os advérbios de
modo vagarosamente e subitamente, reveladores de perícia, e o
adjectivo brutal, indicando alguma vigorosidade. Em contrapartida, ao
representar o adversário do herói, utiliza termos que tendem a enfraquecê‑lo.
Isto é, descreve o engajador sem reflexos rápidos, nem astúcia, portanto,
condenado à derrota: cai desamparado, (...) desmaia, sangrando
abundantemente. A tomada de posturas diferentes na representação das
personagens pelo narrador encontra justificação nas suas motivações
ideológicas. Retomando o fio de pensamento seguido no texto Godido, o
facto de o engajador aliciar negros para o trabalho mineiro torna-o servidor/
(representante) do sistema colonial, enquanto João Xilim, demarcando-se desse
sistema, defronta e vence o engajador, convertendo-se em herói libertador dos
negros do Marandal do jugo colonial. Portanto, desenha-se, também em Portagem,
a visão utópica do fim sistema colonial de exploração. A dominante ideológica continua
sintomática quando João Xilim, representado à luz da focalização externa,
enfrenta o soldado, (p. 62), Marques, (p.73), o chaveiro,
(p. 76), o encarregado das medições, (p. 113) e o Coxo, (pp. 152‑153).
A análise dos segmentos textuais, relatados sob a
vigência da focalização externa permitu - nos examinar a subjectividade das
personagens, mas sobretudo do narrador. Trata-se, como apurámos, da consciência
ávida de um quadro social não racial. Portanto, em Godido e em
Portagem, o narrador não pactua com a ordem montada: a colonial. Por isso,
age no sentido de a romper.
CONCLUSÃO
Ao estabelecermos como objectivo do presente ensaio: demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a expressão
da ideologia, partimos da premissa de que os textos escolhidos (Godido e
Portagem) constituem potenciais matrizes dessa articulação.
Assim, movidos por este interesse,
centramos as nossas reflexões nas modalidades técnico‑narrativas do estatuto do
narrador e da focalização. Com efeito, à luz destas modalidades, examinámos
determinados segmentos textuais, tendo alcançado os resultados seguintes:
Em relação a matéria do estatuto do narrador, verificámos
que em ambos os textos se institui um narrador heterodiegético. Portanto, um
narrador caracteristicamente autónomo relativamente à história que conta. Facto
que lhe permite intervir directamente na acção, comentando, conjecturando,
opinando, criticando, sempre que achar necessário, pois o seu estatuto isenta-o
de qualquer julgamento pelos seus actos. O que quer dizer, por outras palavras,
que, gozando do estatuto de heterodiegese, o narrador manifesta livremente a
sua subjectividade. Subjectividade essa marcada por uma ideologia de feição
utópica anti-colonial e anti-racial, segundo se pode divisar do seu discurso
protestatário e contestatário, inserido no sistema colonial de exploração e
discriminação.
Adoptando: (i) a focalização interna, o narrador apreende
a história através de uma personagem nela inserida. Portanto, esta opção
favorece a vigência da interioridade da personagem focalizada, neste caso
específico, da personagem central, nas obras em estudo. Trata-se, conforme a
análise aponta, de uma interioridade que se identifica com uma ideologia defensora
de uma utopia não racial. Isto é, quer em Godido, quer em Portagem,
a acção da personagem principal orienta-se rumo a um futuro (utopia) em que não
haveria negros. Só homens por toda a parte (G. p. 34); (ii) a focalização
omnisciente, o narrador assume uma posição de transcendência sobre o que conta,
habilitando‑se, deste modo, a tomar o controlo máximo dos acontecimentos,
avaliando-os segundo o nível da sua consciência. E assim, a tentativa de
dissecação dessa consciência conduziu-nos a importantes insinuações
ideológicas, inscritas no desejo de ver abolido o sistema colonial de
discriminação; (iii) a focalização externa, modalidade que lhe impõe a
posição de observador, o narrador apreende directa e exteriormente as
personagens, o espaço e os eventos. Porém, não se exime de manifestar a sua
subjectividade, cuja linha definitória, como tivemos a ocasião de referir, é
traçada por uma ideologia orientada para a ruptura da ordem vigente;
À comunhão ideológica entre as personagens centrais nos
dois textos, acrescentamos, reiteramente, as afinidades também em termos
ideológicos a personagem central e o narrador nas obras analisadas. Algo
comprovado pelo sentimento de afecto do narrador pela personagem principal, nos
dois textos. Porém, mais em Godido do que em Portagem. No
entanto, será na forma que cada um busca os seus ideais que as personagens
centrais se vão distinguir uma da outra. Com efeito, enquanto Godido propõe o
uso de uma força para pôr fim à ordem instalada, João Xilim opta por encarregar
ao tempo, ou aos outros, a missão de romper com a referida ordem.
Portanto, fica aqui evidenciado que a leitura feita dos
textos Godido e Portagem, à luz das modalidades
técnico-narrativas de estatuto e de focalização, deu lugar a dedução de
significativas insinuações ideológicas. Significativo também nos parece a
alcance conseguido com a presente reflexão, pois, para além de através dela se
reafirmar o texto literário como o lugar privilegiado da coexistência e
interacção dos códigos literários e paraliterários; representa, do ponto de
vista da história literária, uma proposta de recepção de parte de um valioso
legado da geração literária da década de 50, do passado século XX. Uma geração
que, quer sob a forma de poesia, quer sob a escassa forma de ficção, se evidenciou
pela representação do contexto social, político e cultural, do seu tempo.
Aliás, não passa despercebido o facto de, embora distantes um do outro, no
tempo, Godido (1952) e Portagem (1965) se desenvolverem com base
no mesmo projecto temático-ideológico: denúncia e contestação do sistema
colonial.
BIBLIOGRAFIA
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31. VARGA, Kibédi. Teoria
da Literatura. Lisboa:
Editorial Presença, 1981
[1] Dias, 1988.
Do conjunto
de textos quer compoõem esta obra, escolhemos um, intutulado “ Godido” e que,
por seu turno, inclui os excertos “Sonho de Negro” e “Godido (Extra) ”.
[2] Mendes, 1981.
[3] Cf. Mendonça, 1980. Pp.33‑45
[4] História, vol.3, 1993. P.129.
[5] Cf. Penvenne, 1982. Pp1-2
[6] Por não perceberem o ardil que o seu
estatuto representava (constituía um dos poderosos dispositivos ideológicos da
metrópole, para recrutar, controlar e usar a mão-de-obra negra), os assimilados
tendiam, por um lado, a "inculpar a burguesia europeia local e a população
branca em geral pelas injustiças do colonialismo" e, por outro lado,
nutriam desprezo pela maioria negra ou indígenas.
[7] Enfrentando dificuldades na concorrência
com a pequena burguesia africana, na conquista dos melhores postos de emprego e
outras regalias, o cada vez crescente grupo dos trabalhadores brancos
organizou-se em sindicato, para exigir, entre outras coisas, as adopções de barreiras raciais no acesso a esses
sectores. E como não convinha ao governo colonial criar polémica com o referido
grupo, aprovou-se a criação e funcionamento do referido sindicato.
[8] Cf. História, vol. 3, op cit., p. 63.
[9]
Cf. Penvenne, op cit., p.12
[10] Idem, ibidem.
[11] Cf. História, vol. 3, p.197
[12] Ibidem, p. 198
[13] Ibidem, pp. 231-232
[14] Ibidem, p.226
[15] No referido período formou‑se, em
Moçambique, o MDJM, Movimento dos Jovens Democratas Moçambicanos. Composto por
Sobral Campos (líder), Sofia Pomba Guerra, Raposo Beirão, João Mendes, Ricardo
Rangel e Noémia de Sousa. O movimento tinha como objectivo “combater as grandes
injustiças sociais de que estavam a ser vítimas os trabalhadores por parte dos
patrões... (e)... promover a unidade de
todos os africanos ... “ (Ibidem, p. 202).
[16] Ibidem, p. 225
[17] Mendes, 1980, p. 31
[18] Cf. Mendonça, 1980, p.38. O
carácter nacional da Literatura deste período é confirmado também por
estudiosos como Russel G. Hamilton,
(cf. Hamilton, 1984. P.15), Orlando Mendes (cf. Mendes. 1980, p. 47).
[19] A revista “O Novo Cancioneiro” foi um dos
principais órgãos divulgadores da estética do neo‑realismo
português em Moçambique (cf. Mendonça, 1980, p. 38).
[20] Cf. Saraiva e Lopes, s/d. P.1078
[21] Idem, Ibidem
[22] Laranjeira, 1985. P. 227
[23] Cf. Todorov, 1987, p. 137
[24] Reis, 1983, p. 49
[25] Mendonça, op. Cit., p. 37
[26] Referindo-se à superioridade numérica da
poesia sobre outras formas literárias, no período em referência, Orlando Mendes
afirma que tal deveu-se ao facto de a poesia ser uma forma de expressão que
melhor pode sensibilizar e contundir o inimigo com menores possibilidades de
repressão, para além de circular facilmente pelo país, a partir das cidades
onde se elabora. (Cf. Op. Cit., 1980. P. 36). Na sua colocação, Orlando Mendes
traça as principais linhas temáticas da escrita na altura produzida:
“sensibilizar” e contundir o inimigo”.
[27] Intitulada Proposta de Edição
Comentada do texto de João Dias, Godido, a reflexão em causa foi apresentada,
por Luis Vasconcelos Pedro, sob a forma de um trabalho de projecto, para a
obtenção do grau de licenciatura em Linguística, à Faculdade de Letras da
Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Dezembro de 1996.
[28] Esta denominação coincide com o título
genérico do presente texto.
[29] A descrição destes e de outros conceitos,
convocados para a discussão, será feita em momento e lugar próprios.
[30]A idade muito jovem do autor (João Dias
começou a escrever aos dezassseis anos), o facto de ter deixado inacabada a
obra (esta foi organizada e publicada postumamente por seus amigos) de onde
extraímos o texto em estudo podem constituir razões suficientes para a
inconsistência estrutural dos dos excertos em análise. Aliás, parece-nos que pelas
mesmas razões se explicam as oscilações verificadas na determinação do género
para Godido e Outros Contos. Na óptica de alguns estudiosos, trata-se de
uma colectânea de contos; Porém, para outros a obra é um romance.
[31] Cf. Dias, 1989. P. IV
[32] Cf. Ferreira [manuscrito], p. 7
[33] Paralelamente à focalização e ao estatuto
do narrador (assunto a retomarmos proximamente), factores como a idade, a
instrução, entre outros, justificam a função, quase, de assessoria do narrador,
quando acompanha a personagem central. Nota-se, por exemplo, que o narrador,
adulto, instruído e com uma visão do mundo ampla e sólida, acompanha um Godido
recém-nascido, adolescente, jovem, sem instrução e com uma cosmovisão
limitada.
[34] Na História de Moçambique, Gungunhana foi
o último imperador do Império de Gaza, e consolidou o seu heroísmo na luta de
resistência contra a presença estrangeira em Moçambique. Sendo Godido seu
filho.
[35] Ao contrário do que sucede com Godido e Outros Contos, parece não haver flutuações na classificação de Portagem como
um romance. Com efeito, a obra reveste-se de uma linguagem de elevada
elaboração; nela movimenta-se um número maior de personagens; denotam-se
espaços diversificados, bem como uma complexidade acentuada do tempo do
discurso.
[36] Carmen Lydia de Sousa Dias utiliza o
termo “momentos” para designar essas passagens e caracteriza-os como diversos e
intercomplementares onde as fases cruciais da vida de João Xilim são
rememoradas uma a uma, e, a cada nova repetição são acrescidos os novos
conflitos advindos de outras circunstâncias adversas. Sendo, portanto, possível
totalizar cerca de dez momentos (Cf. Sousa Dias, (s/d). P. 76).
[37] Nessas regiões, Xilim verifica que, como
ele, outras pessoas são marginalizadas: “Embarcou como moço de limpeza num
cargueiro que se destinava ao Porto do sul. Ali deram-lhe licença para
desembarcar e viu os seus irmãos mulatos e negros que trabalhavam no cais e nas
fábricas e eram tão subtraídos à civilização como negros do Marandal; O
fogueiro Jaime era um homem da cidade, vivera uma infância aventureira nos
subúrbios, crescera vadio entre meninos negros, chineses, indianos mulatos e
brancos, todos eles mais ou menos repelidos por quem lhes deveria afecto.” (p. 26); Cenários semelhantes a estes são
experimentados por outras personagens. Tais são os casos de Campos
(pp. 35 e 36), Maria Helena (pp.88, 89), Esteves (pp.99, 100 e101), Borges
(pp.127 e 157).
[38] Cf. Sousa Dias, s/d., p.71
[39] Cf. Reis, 1983. P. 233. João Dias (Godido),
Orlando Mendes (Portagem) constam como autores representativos da
produção literária dos anos 50, conforme referimos anteriormente (p.Viii). Este
facto, aliado ao objectivo deste ensaio, justifica a nossa atenção na relação
entre o texto literário e a ideologia.
[40] Um dos maiores alcances no estudo das
relações entre a literatura e a ideologia foi conseguido pela estética
marxista, com a sua teoria do reflexo. Com efeito, como refere Maria Alzira
Seixo, a categoria materialista do reflexo tem sido, desde sempre, ou deturpada
segundo uma concepção que a identifica com a imagem directa e lhe atribui
características de representação, ou evitada por incómoda e incompreendida. (Cf.
Seixo, 1976. P.15)
[41]. Cf.
Eagleton, 1991. P. 1
[42] . Cf. Louis Althusser e Gruy Rocher,
citados por Reis, 1983. P. 250
[43]
. Cf. Jameson, 1981. P. 289
[44]
. Cf. Jameson, op. cit., loc. cit.
[45]. Para esta estudiosa brasileira, o
conjunto das ideias que surgem para esclarecer o real mistificado pela
ideologia do poder, as análises que desmistificam a dominação no plano das ideias
formam uma contra- -ideologia.
(Cf. Chaui, 1981. P. 93)
[46] . Sobre esta matéria, ver Aguiar e Silva,
op. cit., pp. 90-96
[47].
Cf. op. cit., p. 96
[48]
Cf. Matusse, 1986. P. 69
[49] . Cf. Aguiar e Silva, op. cit., p. 695
[50]. Cf. Reis e Lopes, 1987. P. 249
[51]
. Cf. op. cit, loc. cit
[52]
. G. Genette, citado por Aguiar e
Silva, op. cit., p. 761
[53] . Cf. op. cit., p. 48
[54] . Reagindo contras as posições contrárias
à irrupção da subjectividade do narrador no discurso, Carlos Reis qualifica de
utópica a possível neutralidade do narrador. Cf. Reis, 1982. P. 80
[55].
Cf. op. cit., p. 244
[56].
Cf. op. cit., p. 255
[57]. Daqui em diante, empregaremos a
forma abreviada G. (Godido) e P. (Portagem) entre
parênteses no interior do texto, para nos referirmos às transcrições do corpus.
Daqui em diante, empregaremos a forma abreviada G. (Godido) e
P. (Portagem) entre parênteses no interior do texto, para nos
referirmos às transcrições do corpus.
[58] . De acordo com Genette, o
narrador transfere, geralmente, a sua função ideológica para certas
personagens. Passando tais personagens a objectos de observação. (Cf. op. cit,
pp. 255 e 256)
[59]. O registo do discurso científico-filosófico Justifica-se
dado o elevado nível intelectual do narrador, a que fizemos referência no
início deste estudo.
[60]. Na esfera da política colonial,
a linguagem patrão/empregado não define apenas as relações no trabalho,
distingue sobretudo o instruído do não instruído, o civilizado do não
civilizado, o inteligente do não inteligente, enfim, a submissão do segundo
pelo primeiro. É, pois, este quadro discriminatório que se contesta no tecido
da história.
[61]. O discurso justificativo e explicativo, de acordo com os
ensinamentos de Genette, está ao serviço da função ideológica do narrador (Cf.
Genette, 1995. P, 255).
[62]. Refira‑se que essa esperança está
esboçada na parte derradeira do penúltimo capítulo da narrativa, intitulado
“Sonho de Negro” ( cf. p. 34).
[63]. O discurso modalizante resulta, segundo
refere Genette, da utilização, pelo narrador, de “locuções modalizantes”, como
“ talvez”, “sem dúvida”, “como se”, “aparecer como”, a fim de dizer
hipoteticamente aquilo que não poderia afirmar sem sair da focalização interna
(cf. op. cit., p. 201)
[64]. V. M. de Aguiar e Silva, In: (Reis,
1981. P. 213)
[65].
Cf. Genette, 1995. P.187
[66]. Cf. op. Cit., Pp. 183- 187. Cf., também, Reis e Lopes, 1987. Pp. 158- 159
[67]. Temos em mente, por exemplo, a
posição tomada por Percy Lubbock, em relação à escolha e vigência de um
certo ponto de vista. Posição essa, que apesar de ser menos inflexível que as
outras (defende a variação de ponto de vista pelas personagens), caí no defeito
de considerar que a opção pelo ponto de vista de narrador deve ser uma solução
ocasional ”, Portanto, marginaliza, de certa maneira, a figura do narrador.
(in: Reis: 1980. P.36)
[68]. Cf. Aguiar e Silva, 1988. Pp.
765-767
[69] . Cf. op. Cit., loc. Cit.
[70]
. Cf. Reis, 1981. Pp.49-50
[71]
. Cf. Genette, 1995. Pp. 187-192
[72] . Fazendo alusão às
potencialidades da personagem
focalizadora na apreensão da história, Reis e Lopes afirmam que o que está em causa
não é estritamente aquilo que a personagem vê, mas de um
modo geral, o que é alcançado por outros sentidos do seu campo de
consciência, ou seja, o que é alcançado
por outros sentidos para além da visão, bem como o que é já conhecido
previamente e o que é objecto de reflexão interiorizada (Cf. op. cit., p.164).
[73] . Para uma informação mais
detalhada sobre o conceito de herói, cf. Reis e Lopes, op. cit., pp. 306‑310, e Aguiar e Silva, op. cit., pp.
667‑595.
[74]. Cf. Reis e Lopes, op. cit , p. 188
[75]
. Cf. Reis, op. Cit, p. 429
[76]
. Cf. Genette, op. cit., p. 189
[77] . De acordo com Édouard Dujadin,
monólogo interior (discurso imediato, para Genette) é o discurso sem auditor e
não pronunciado, pelo qual uma personagem exprime seu pensamento mais íntimo,
(Cf. Genette, op. cit., pp,17 9 e 191 e Reis e Lopes, op. cit., p. 230)
[78]. O
termo matapa designa folhas de mandioqueira, com as quais se
preparam um molho do mesmo nome, bastante apreciado no sul de Moçambique. Toucinho-do-céu
é um doce de ovos e açúcar, da tradição dos mosteiros, vendido nas pastelarias.
[79]. Esta prática do narrador,
orientada geralmente para a sua forma de ver o mundo, é constante no texto e
decorre do contexto da supervisão da personagem, por um lado, e na sua
intervenção directa na diegese, por outro lado.
[80]. Propensos à expressão da subjectividade
do narrador, os registos do discurso relevam de importância especial neste
trabalho, já que “a sua formulação contribui decisivamente para incutir na
mensagem uma certa configuração ideológica e afectiva”. (Cf. Reis, 1981. P.
365)
[81]
. Cf. Reis, 1981. P. 88
[82].
Cf. Hamilton, 1984. P. 15
[83] . Referindo-se à conexão entre os dois
tipos de focalização, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes afirmam que a
focalização externa pode decorrer imedeiata e simultaneamente da instauração da
focalização interna. Segundo os mesmos autores, a conjugação dos dois tipos de
focalização surge naquelas situações em que o olhar de uma personagem da
história em situação de observação (focalização interna) implica uma
focalização externa sobre aquilo que esse observador limitada e exteriormente
pode apreender e deduzir, não se isentando tal observador de manifestar juizos
subjectivos acerca do que vê. (Cf. Reis e Lopes, 1987. P. 163
[84] . Cf. Aguiar e Silva, op. Cit., p. 699
[85] Cf. Reis e Lopes, op. cit., p. 310
[86] . Cf. Aguiar e Silva, op. Cit., p. 776
[87] . Cf. Reis e Lopes, op. Cit., p.168
[88] . Ibidem, p. 168
[89] . A preocupação do narrador em produzir
um discurso claro é notória em ambos os textos. A mesma estará, eventualmente,
na origem das constantes supervisões das personagens, pelo narrador.
[90] . Cf. Reis e Lopes, op. cit. P. 162
[91] , Cf. Reis e Lopes, op. cit., p. 167
[92] . Um dos efeitos da instauração da
focalização externa é a ideia do <<mistério>>, ou seja, o autor não
nos diz de um momento para o outro tudo o que sabe, como diria Michel Raimond.
[93] . Situação similar ocorre em Godido, num relato também
narrado sob a vigência da focalização externa: “Não ia meia hora, o Buick do senhor Antunes
ali parava. Josefa apareceu da confusão da noite. Um quimono preso dos ombros e
dos seios, e a capulana de riscado azul, escondendo‑lhe o pudor até aos pés.
Trouxe atrás de si o resfolhar de panos e de plantas” (G. p. 31).
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