Publicações


 

 













AURÉLIO CUNA


 

Estatuto e Focalização:

Modalidades Técnico-narrativas

Propensas à Expressão de Ideologias

em Godido, João Dias

e Portagem, Orlando Mendes


 

 

 

 

 

 

 

 








Livaningo

(Tese)


 

 

 

 

 

 



 

autor

Aurélio Cuna



Editora

Livaningo

Edição

Junho de 2012

Tiragem

60 exemplares

Corte e pintura

Elcídio Bila e José dos Remédios

Pintura e acabamentos

Joss

Revisão

José dos Remédios

Design gráfico

Elcídio Bila

Paginação
Elcídio Bila

 









 

 

 

 

 

 

 

 

                 

 

 

 

 

 

 

 

 

À memória dos meus pais, falecidos



 

 

 

 








 

 

 














AGRADECIMENTOS

 

À minha supervisora, Prof. Doutora Fátima Mendonça, expresso o meu agradecimento pelo apoio que me dispensou, quer em ideias, quer em materiais (bibliografia pessoal).

Agradeço a todos os meus professores, em especial os da Secção de Literatura, pelo seu contributo em conhecimentos e materiais bibliográficos.

Às minhas irmãs Regina e Esselina, obrigado pelo apoio moral e material que me deram.

Ao senhor Sérgio Tique, ao Benedito Cossa (falecido) e à família, ao dr. Orlando Benzane, ao Zavala, ao Nandinho, ao Sarmento, ao Leandro, ao Farisse, aos colegas e amigos agradeço pela assistência e solidariedade, com que me ajudaram em tudo.

Quero, por fim, expressar o meu muito obrigado à Filomena (Filó), pela modéstia e encorajamento que não dispensou em nenhum momento do percurso, à Mércia Lídia, Jocelyne e Maconne, Shénia pela cumplicidade.



 

 

 

 

 

 

 













 

SUMÁRIO

 

O presente trabalho consiste num estudo sobre as Potencialidades dos procedimentos técnico‑narrativos do estatuto do narrador e da focalização para a expressão da ideologia em Godido, de João Dias, e Portagem, de Orlando Mendes. Tem como objectivo demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a ideologia

Para o cumprimento deste objectivo, operamos com os conceitos de ideologia, narrador, estatuto do narrador, focalização e personagem. O trabalho subdivide‑se em três capítulos:

O primeiro capítulo é uma introdução geral que, além de apresentar o objectivo, a motivação e importância do estudo, a escolha do tema, a hipótese de trabalho e as etapas metodológicas, faz um enquadramento histórico‑literário das obras em estudo.

O segundo capítulo destina‑se à análise do corpus, que inclui a revisão bibliográfica dos pressupostos teóricos.

O terceiro capítulo é constituído por uma conclusão geral do trabalho.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para um enquadramento histórico‑literário de Godido e Portagem

 

Godido e Outros Contos, de João Dias[1] e Portagem, de Orlando Mendes[2] figuram como obras representativas da Literatura Moçambicana de ficção do tempo colonial. Produzidos durante o segundo período, de acordo com Fátima Mendonça[3] os textos em apreço não são alheios ao contexto histórico‑literário em que surgiram.

Coincidindo com os acontecimentos que marcaram o apogeu do colonialismo português em Moçambique[4], o período em referência foi o que trouxe de forma mais acentuada a diferença entre o europeu e o africano. Este fosso assenta, fundamentalmente, no objectivo principal da colonização: a acumulação da riqueza. Com efeito, para cumprir este objectivo, as autoridades coloniais introduziram mecanismos de reprodução, absorção e controlo da mão‑de‑obra africana. Um dos mecanismos, e talvez o principal, consistiu na fragmentação da estrutura social moçambicana. A estratégia utilizada pelas autoridades coloniais foi a criação de um grupo muito reduzido de nativos (maioritariamente mestiços) "como uma categoria de separação (diferenciação entre africanos)[5]. Trata-se de indivíduos, denominados assimilados[6], que, beneficiando de uma educação suficiente e bens materiais, gozavam de estatuto de cidadão português. O que lhes permitia igualar-se aos brancos perante a lei civil. O terceiro, e o maior de todos os grupos, era constituído pela população nativa, denominada indígena. Os indígenas eram submetidos ao trabalho obrigatório. Estava, deste modo, introduzida a linguagem discriminatória na composição e funcionamento da sociedade moçambicana.

Para além do assimilacionismo e do indigenato, o estado colonial montou outros dispositivos, com vista a obtenção e exploração da mão‑de‑obra barata. Tal procedimento consistiu na legalização de organizações sindicais[7] e de movimentos associativos, entre outros. Formados por africanos com o mínimo de instrução, ou seja, entre negros e mestiços assimilados, os movimentos associativos surgiram não para pôr em causa a política da metrópole para os africanos em geral (negros colonizados), mas para contestar o colonialismo, nos aspectos que lhes prejudicava, enquanto uma "classe" privilegiada. De facto, "sob a máscara da valorização cultural e promoção intelectual da comunidade negra, o Grémio Africano, e mais tarde a Associação Africana, pugnou essencialmente pela defesa dos mulatos e assimilados, contra a discriminação racial que cada vez mais os atingia[8]. Como se pode ver, da posição ambígua do Grémio resultava um paradoxo de aproximação e afastamento dos seus membros em relação aos europeus e aos africanos. Tal clima culminou em rupturas dentro da própria associação, dividindo os mulatos (com maior prestígio no seio do grupo) e os negros assimilados. Na verdade, o Grémio era constituído por indivíduos que, por um lado, aspirando alcançar o estatuto do europeu de quem dependiam economicamente, e, necessitando de se legitimar politicamente como representantes dos negros, por outro lado, se identificavam, do ponto de vista de posição profissional e de qualificação literária, como uma "classe" pertencente ao mundo dos brancos, urbano e "civilizado", e, do ponto de vista de identidade racial, como negros". Semelhante postura foi assumida pelo Instituto Negrófilo, um movimento associativo formado por negros assimilados dissidentes do Grémio Africano. Com efeito, os objectivos do movimento definiam‑se pela promoção do desenvolvimento material, intelectual e moral dos seus associados e, em geral, de todos os negros portugueses.

Portanto, cisões no seio dos movimentos associativos e posterior formação de novos grupos interessavam deveras à política colonial de "dividir para reinar". Ou seja, o sucesso da economia capitalista colonial passava necessariamente, como referimos no início, pela exploração da mão‑de ‑obra barata. Situação que levou as autoridades coloniais a adoptar a estratégia ideológica de discriminação racial, que, por seu turno, conduziu à heterogeneidade social, caracterizada principalmente pelas diferenças de acesso a propriedade (registo de propriedade e licenciamento nos negócios), na competição pelo emprego, casas (zonas residenciais e padrões de construção), saúde e nas facilidades educacionais, entre outros. Essas diferenças pesavam particularmente à esfera da competição negra[9].

Mas,    ainda de acordo com Penvenne, essas práticas discriminatórias elevaram a consciência da comunidade negra esclarecida, que aumentando o cruzamento das classes do racismo, paradoxalmente tendia a unir‑se através da diminuição das características de classe que os dividiam[10]. É pois essa consciência que, não tendo alcançado sucesso no período inicial, viria, na década de 50, a solidificar‑se. Com efeito, "apesar do rigor da repressão, a intensificação da exploração rural e das barreiras raciais no trabalho, a crescente divisão e alienação das terras em benefício dos colonos e a discriminação religiosa não podiam deixar de inspirar oposição da parte das camadas mais esclarecidas[11]. Ressurgiam, deste modo, com mais força e objectividade, as diversas formas de contestação contra a ideologia colonial de discriminação e exploração. Contestação essa que para além das greves e motins, manifestou‑se sob outras formas, tais como a canção, a música, a dança populares e a literatura[12]. Foi precisamente nesse âmbito que jovens intelectuais e artistas encontraram formas, mais ou menos subtis, de criticar ao regime colonial português, contribuindo para a evolução do conceito da nação moçambicana e da cultura nacional[13]. A literatura, por ser o meio de comunicação mais imediato e menos dispendioso, foi o recurso mais utilizado nessa acção de contestação levada a cabo principalmente pelos “filhos da terra”, discriminados pelo sistema colonial, integrando pretos, brancos e mulatos[14]. Dentre esses “filhos da terra” destacam‑se José Craveirinha, Noémía de Sousa, João da Fonseca Amaral, Ruí Knopfli, Rui Guerra, Rui Nogar, entre outros. Estimulados pela atmosfera do período pós segunda guerra mundial[15] e pelo amadurecimento das ideias pró‑negras do pan‑ africanismo, do nacionalismo africano, da negritude, este grupo de jovens produziu uma literatura “marcada por uma rejeição da cultura colonial”[16]. Trata‑se, de acordo com Orlando Mendes, de um movimento constituído por africanos e descendentes de colonos, que assumindo atitudes de inconformismo com a política colonial solidariza-se com as aspirações populares e apresenta‑se como porta-voz intelectual do nacionalismo[17]. Nasciam deste modo as primeiras tentativas sistematizadas de "criação de um espaço literário nacional[18]. Sendo salutar referir que a generalização do interesse pelo espaço e vida nacionais, entre os signatários da actividade literária do segundo período, teve, do ponto de vista estético‑literário, a influência dos ensinamentos do neo‑realismo português, introduzidos quer por portugueses que continuavam a chegar ao país, quer por estudantes moçambicanos em Portugal[19]. Difundido a partir da década de 30, o neo‑realismo afirma‑se como uma nova focagem da realidade portuguesa, com objectivos postos na conscientificação e dinamização de classes sociais mais amplas[20]. Com efeito, enquanto em Portugal o cumprimento destes objectivos impunha ao movimento a tarefa de “criticar o elitismo pedagógico‑proudhoriano‑anteriano e dos democratas da Seara Nova, dos anos 20” [21], em  Moçambique, o programa do neo-realismo contribuiu na consciencialização e dinamização da população africana, com vista a contestação do quadro social vigente, o da colonização e de exploração. Caracterizando o contributo a prestação dada pelo neo-realismo português na produção literária do período em referência, Pires Laranjeira afirma que o neo-realismo e, no caso dos africanos, a negritude surgiram no mundo actual como respostas estéticas de sectores sociais e culturais com uma perspectiva histórica de consciência dos problemas da generalidade do povo trabalhador (sobretudo os operários, camponeses e todos os trabalhadores assalariados, de baixos rendimentos e vida precária)[22]. A característica programática deste movimento reforçou ainda mais a já visível tendência temático -ideológica protestatária da produção literária do segundo período. Portanto, pela coesão sobretudo temática e ideológica, inspirada na tomada de consciência nacionalista anti-colonial, a produção literária dos anos 50 assumiu-se como uma “série literária” em correlação com outras séries vizinhas, nomeadamente, a vida social[23].

Seguindo as análises de Tynianov, Godido e Portagem, enquanto obras particulares postas em correlação com a respectiva “série literária”, reflectem a realidade da vida social, outra série que as condicionou. Ou por outra, a realidade social afirma-se, segundo observa Carlos Reis, como inspiradora primeira da produção literária[24]. Portanto, podemos afirmar, sem grandes receios, que o contexto social de moçambicano condicionou a respectiva escrita literária, de que Godido e Portagem são o exemplo referencial.

A referencialidade de Godido e Portagem tem a ver, também, com o facto de terem sido produzidos no decorrer de um dos mais dinâmicos momentos da nossa história literária antes da independência, segundo Fátima Mendonça[25]. Trata-se de um período áureo pois marcou, principalmente através da poesia, a afirmação das letras moçambicanas. Tendo sido a ficção representada apenas pelas obras em estudo mais o livro Nós Matámos o Cão Tinhoso, uma colectânea de contos, da autoria de Luís Bernardo Honwana (1964)[26]. Ora, se nos anos 50 a produção da ficção foi fraca, este facto foi agravado nos períodos subsequentes por escassez de estudos dedicados a essa produção. Até ao momento, consta-nos que apenas Godido foi alvo de uma reflexão sistematizada[27]. Os restantes estudos são contribuições dispersas em jornais e revistas. Portanto, como consequência imediata da ausência de estudos aprofundados e sobretudo sistemáticos, a ficção dos anos 50 cai paulatinamente no “esquecimento”.  Face a estas circunstâncias, pensamos ser particularmente relevante uma reflexão em torno de Godido e Portagem − obras paradigmáticas do período em referência. Acreditamos, portanto, que esta poderá ser uma das formas de resgatar a ficção moçambicana dos meados do século XX, ora parcialmente ignorada, contribuindo, desta feita, para a pesquisa e registo da história literária de Moçambique.

Historicamente, atravessado pelo auge da polaridade colonizador vs colonizado, o enredo em Godido e em Portagem surge marcado por uma acentuada componente temático-ideológica. Mas porque a temática e a ideologia, consideradas enquanto códigos paraliterários, contribuem para a compreensão cabal da dinâmica dos códigos técnico-literários, impõe-se-nos a combinação daqueles com estes. Desta constatação, nasceu a estratégia de abordagem para o presente estudo: análise do estatuto e da focalização, enquanto procedimentos técnico-narrativas ao serviço da expressão de ideologias em Godido e Portagem[28].

Após uma leitura atenta, verificámos que o estatuto e a focalização constituem vectores da (con)textura ideológica em Godido e Portagem. Isso permitiu-nos formular a seguinte hipótese de trabalho:

− Há evidências de uma articulação entre a técnica narrativa e a ideologia em Godido e em Portagem.

Deste modo, orientamos a presente reflexão no sentido de demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a ideologia nos textos ora escolhidos.

Assim colocados, a hipótese e o objectivo do estudo, fica explícito que a análise do corpus incidirá sobre as categorias discursivas do narrador e da personagem[29]. A primeira, enquanto instância produtora do discurso e a segunda, como agente dos acontecimentos que enformam a trama. Identificados os elementos estruturadores da análise, cumpre-se-nos, agora, indicar as etapas metodológicas. Na primeira, a anteceder a análise propriamente dita, procedemos à apresentação do corpus, bem como uma breve abordagem teórica do conceito de ideologia. A segunda etapa compreende a análise dos textos. No primeiro momento, examinaremos o estatuto do narrador, com vista a dedução das insinuações ideológicas decorrentes do contacto que se estabelece entre si e a história. No segundo momento, analisaremos os textos à luz da focalização interna, a fim de detectarmos os posicionamentos ideológicos subjacentes à subjectividade da personagem. No terceiro momento, a análise centrar‑se‑á na focalização omnisciente, guiados pelo interesse de inferir a ideologia do narrador. Este mesmo objectivo norteará o quarto momento, no qual deslocaremos o foco da análise para a focalização externa. A terceira e última etapa acolhe a conclusão, seguida de bibliografia.

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

































 

 




1. ANÁLISE:

Estatuto e Focalização: procedimentos técnico-narrativas ao serviço da expressão da ideologia em Godido e Portagem

 

O Corpus

Godido e Portagem desenvolvem ambos a temática de contestação do sistema exploratório e discriminatório da sociedade colonial. Contudo, isso acontece de maneira particular em cada texto.

 

Composto por três excertos[30] (Godido, Sonho de Negro e Godido (extra)), o texto de João Dias levanta uma problemática social, originada pela convivência conflituosa de dois grupos heterogéneos: o grupo maioritário, constituído pela população nativa e o grupo minoritário, formado por portugueses. Trata-se de um conflito consubstanciado pelo recurso permanente a uma linguagem dicotómica, do tipo brancos vs negros; exploradores vs explorados; instruídos vs não instruídos. Várias personagens desfilam, representando este cenário. Entre elas, destaca‑se Godido, uma personagem que toma todas as iniciativas da história, o que, consequentemente, lhe confere a função de personagem central. O destaque atribuído a personagem Godido, comprovado pela sua escolha para título da obra e do excerto em estudo, é também reiterado por Orlando Albuquerque, prefaciando a primeira edição de Godido e Outros Contos (1952): “Godido, o personagem principa1 dos diversos contos, iria passando de uns para os outros, estabelecendo assim um fio de ligação entre eles e dando lhes certa unidade...” [31] Nos três excertos que compõem o texto em estudo é notória a presença permanente de Godido, bem como a função aglutinadora que exerce sobre os mesmos.

A posição de proeminência ocupada por Godido na narrativa leva a que, em termos discursivos, o narrador concentre a sua maior atenção sobre esta personagem. Com efeito, nos excertos Godido e Godido (extra), o doador do discurso acompanha com zelo o percurso e vivências da personagem central, desde o seu nascimento e infância na Senzala, deslocação, até à posterior fixação na cidade. Aqui, Godido, contra todas as expectativas que alimentava, enfrenta e contesta a crueldade do sistema colonial. Em Sonho de Negro, o discurso do narrador representa um Godido revoltoso contra o sistema discriminatório. A sua acção, que também decorre numa zona urbana, culmina com uso da força, com vista a resolução do conflito.

Nota-se, portanto, que, nos três excertos, o narrador não só conta a história, mas também intervém, criticando, filosofando, tomando posição[32]. Isto é, o narrador sobrepõe-se às personagens. Esta prática surge de forma deliberada e frequente, nos momentos concedidos à personagem central[33]. Em Godido e Godido (extra), por exemplo, a figura de Godido é alvo das manipulações do narrador, que ora lhe inculca qualidades e/ou defeitos, ora lhe atribui atitudes e/ou sentimentos. Eis o que se nos oferece nesta passagem, em que o narrador, fazendo apelo ao discurso onírico, prevê o nascimento de Godido, atribuindo-lhe qualidades heróicas: “Nascera um quase‑Deus!...” (p. 15); “o mesmo negro feito Gungunhana de outras gerações”[34]. Noutras ocasiões o narrador antevê, avaliando ele próprio, o futuro da personagem: “Viverá a vida inteira camuflado como os carros de           assalto, propagando o mal aos seus descendentes” (p. 19), chegando mesmo a insinuar sentimentos e explicações que Godido daria ao seu destino: “Ele, que nascera e vivera na escravatura, pedia graça

De «dominus»” (p. 22) ; “nascera rei nas costas da mãe, fora ditador onde a mãe não fora mais que o povo oprimido” (p. 20); “E porque daquela boca tinha saído uma prece de compaixão, um pedido de graça, ali estava ele amarrado à imundície” (p. 22).

 

No entanto, em determinados momentos, o controlo do narrador sobre a personagem central cessa significativamente. Tal sucede, por exemplo, no excerto Sonho de Negro, no qual, em forma de sonho, Godido, por iniciativa própria, derrota, em luta, o branco Antunes, metonimicamente, representante de todos os agentes do sistema colonial: “o corpo sem vida atirou‑o, ao acaso, para o automóvel” (p. 33).

Recapitulando: os excertos Godido e Godido (extra) documentam o nascimento de Godido, na Senzala, a infância, completada na cidade, lugar que o acolheu pelo resto do tempo. Foi, pois, na cidade que a personagem tomou a consciência das barreiras da sociedade colonial. O terceiro excerto, Sonho de Negro, tem como cenário de fundo, a concretização, em sonho, do desejo de Godido de acabar com o sistema colonial de exploração.

 

À semelhança do que sucede no texto Godido, no romance[35] Portagem, a acção parece deixar transparecer a sociedade colonial, estruturalmente heterogénea. E, uma vez mais, o traço “raça” constitui justificativa principal, do qual derivam todos os outros mecanismos e linguagens de discriminação. O elemento “raça” aparece, pois, como elemento estruturante da narrativa em Portagem. Com efeito, não pode ser entendido como mero acaso a evolução, no texto em estudo, de uma vasta equipa de personagens, distribuídas em três grupos, racialmente distintos (brancos, negros e mulatos). O estigma racial surge, portanto, como principal responsável pela relação de alteridade entre as personagens actuantes no universo diegético em Portagem. O mulato João Xilim, síntese de duas raças (negra e branca), evidencia-se como protagonista da acção. Trata-se de uma personagem cuja vivência, densamente marcada por sucessivas e atribuladas aventuras, atravessa o romance. É, pois, assinalável a função aglutinadora da esfera de acção de João Xilim, no decorrer dos vinte e oito capítulos que compõem a obra. Repare-se, por exemplo, que, o primeiro capítulo, embora dominado pela velha Alima, a origem de João Xilim (filho de pai branco e mãe negra) constitui motivo para Alima repreender a filha Kati por esta viver junto e sob ordens do homem branco: “Você tem um filho que anda na terra do branco, metido com os brancos, não é? Ih! Ih! Ihi... um filho de tua barriga que é filho dum branco! Um filho para aprender todas coisas de branco” (p. 13). Outro aspecto que reputamos de particular realce a respeito do papel central de Xilim é o facto de este plasmar, em termos temáticos, o conflito, sobretudo racial, da sociedade colonial: “Proibiram‑no de ir brincar com os meninos da sua idade (...) ele deveria ser apenas o moleque das limpezas e nas horas vagas, única companhia para a infância de Maria Helena” (P. 16); “Este moleque parece ‑me esperto demais. Além disso é mulato. E não gosto nada desta raça. São mais falsos que os pretos” (p. 17). (Cf. também pp. 32, 33, 53, 64, 74, 98 e 112).

A função vectorial de João Xilim na diegese é, ainda, consubstanciada pelo conjunto das constantes rememorações de passagens mais importantes da sua vida[36]. Enfim, a compreensão da história passa pelo acompanhamento da trajectória de João Xilim, resumida nessas rememorações. Tal é a percepção que temos, vendo João Xilim (i) em profunda obsessão pela busca da sua identidade. “E recorda‑se que fora naquele verão que se apercebera de uma realidade que viera a marcá‑lo do ventre de sua mãe. Ele não era negro como a outra gente nascida na terra do Marandal” (p.21); (ii) rejeitado e marginalizado quer em Marandal (sua terra de origem), quer noutras regiões por onde passou[37].“E viu que o menino do Marandal estava ainda crescendo para ser um homem sem lugar próprio na sua terra, porque fugira do Marandal e era filho da negra Kati que se entregara ao patrão Campos e fora moleque da menina Maria Helena” (p. 26); (iii) ensaiando uma vingança, “Todas as recordações têm, contudo, novamente, o sentido antigo. Precisa de vingar‑se dos que lhe fizeram sofrer” (p.79); Ou (iv) conformado, por fim, com o seu destino atribulado. “Todas as raivas da sua vida passam‑lhe, uma a uma, pela memória. Não, não tem nada que se arrepender. Cumpriu fielmente o seu destino. Foi sempre ele, o mulato, um homem clandestino: na barriga da mãe, moleque em casa de D. Laura, menino da infância de Maria Helena, testemunha do abraço da negra Kati e de patrão Campos, capataz da mina do Marandal, amante ilegítimo, emigrante sem passaporte, número extra entre os sentenciados negros, contrabandista, vingador despercebido” (P.160).

A par do realce conferido à personagem central, denota-se em Portagem uma presença forte e activa do narrador. Com efeito, este não só narra a história, como também cumpre com a tarefa de supervisionar as suas personagens faccionais, segundo observa Carmen Lydia Sousa Dia[38]. É no âmbito dessa supervisão que o narrador ora conjectura: “No entendimento dos negros da mina do Marandal, João Xilim é o patrício que emigrou e aprendeu a ser diferente deles” (p.15); “Às vezes, um e outro entendem que João Xilim conheceu diversos padrões da condição humana” (p. 31); Ora sugere a prática de determinados actos: “E compreende que precisaria de realizar um acto violento para escapar à necessidade dessas perguntas, ou obter resposta para elas” (p. 39); Ora recrimina algumas atitudes: “Não é que ninguém iria compreender essas coisas mesquinhas que são a razão do cansaço da vida toda de João Xilim?” (p. 107).

Como se pode perceber nos segmentos textuais acabados de transcrever, a supervisão do narrador incide particularmente sobre João Xilim, o que prova a atenção que aquele dedica ao protagonista, por um lado, e confirma a diferença que se impõe entre os dois, por outro lado. Ou seja, o discurso em Portagem é doado por um narrador adulto, experiente, com elevado nível de conhecimentos, face a ampla visão do mundo amplo, que detém. Em contrapartida, o protagonista alarga a sua visão do mundo à medida que vai tendo o contacto directo com o mesmo: João Xilim mete-se às suas aventuras, desde criança, o que significa que a mentalidade amadurece condicionada pela idade e pela instrução, que era praticamente nula.

Em função do exposto, verificamos que na estruturação de Godido e de Portagem, dois elementos se evidenciam: o narrador e a Personagem. E, consideradas do ponto de vista da sua subjectividade (visão do mundo) e não só, e, tendo em vista o objectivo deste estudo: (demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a ideologia), quer a categoria do narrador, quer a da personagem (sobretudo o protagonista) dominam o campo de análise em vista.

Portanto, resta-nos frisar que, sendo constituído por duas obras, o corpus ora apresentado obriga-nos a seguir uma estratégia de abordagem paralela, por forma a determinarmos não só os aspectos aproximativos, mas também os de ordem distintiva, nos textos.

 

2.1 Texto literário e ideologia

Uma tentativa de definição das relações entre o texto literário e a ideologia coloca-nos perante a difícil e ingrata tarefa de aproximar dois territórios autónomos, aparentemente alheios um ao outro, e determinar-lhes possíveis entrosamentos. No entanto, essa tarefa é inevitável para o presente estudo, pois, como refere Carlos Reis, a articulação entre literatura e ideologia é relevante, sobretudo quando estão em causa as criações de artistas que marcaram indelevelmente as épocas em que surgiram[39].

 

As relações entre literatura e ideologia são, sem margem para dúvidas, de natureza complexa. Justamente porque pressupõem a acomodação pacífica de dois domínios autónomos e diferentes num mesmo espaço: o texto literário. Isto acrescido às variadíssimas acepções atribuídas à literatura e à ideologia. Porém, facto importante é que, embora encaradas de forma variada (hiper-valorizadas por uns, banalizadas por outros, ou aceites com algumas reservas por outros ainda[40]), as relações entre literatura e ideologia integram a contextura do discurso literário. Por exemplo, reunidos em Literatura, Significação e Ideologia (compilado por Maria Alzira Seixo) Étienne Balibar e Pierre Macherey, partindo da noção de que a literatura é produto de uma prática social, consideram o texto literário um operador de uma reprodução da ideologia no seu conjunto; Júlia Kristeva, entendendo literatura como prática semiótica, vê o texto literário como o lugar em que a significância como prática pode fender a ideologia. Por seu turno, W. Dithey, seguindo uma análise de orientação sociológica, sustenta que a poesia (literatura), enquanto produto da vida cultural de uma época, exprime directamente uma concepção do mundo. Fácil de verificar, nestas formulações, é que Balibar e Macherey, quer Kristeva, ou Dithey referem todos a vigência da componente ideológica no texto literário, pese embora a acepção específica que cada um atribui ao complexo lexema literatura. Complexo é, igualmente, o termo ideologia. Este é passível, portanto, de várias acepções, como o dissemos, algures neste trabalho. Atento a este facto, Terry Eagleton alude‑o na sua discussão em torno do conceito de ideologia, começando por afirmar que “o termo ideologia tem um conjunto de significados úteis, os quais nem todos são compatíveis uns com os outros[41]. A seguir, o autor de IdeoIogy procede a uma listagem de cerca de dezasseis definições para o conceito de ideologia, na sua óptica, correntemente em circulação.

Alertados da pluralidade interpretativa do termo ideologia, lançámo-nos à pesquisa bibliográfica sobre o assunto, particularmente para examinarmos as diferentes acepções atribuídas ao termo. O resultado alcançado foi que, de um modo geral, as definições de ideologia tendem a considerá‑la um sistema instituído para manter a ordem instalada num grupo determinado. Tal é o que se depreende, por exemplo, nos seguintes registos: “ideologia é um sistema de representação dotado de uma existência e de um papel histórico, no seio de uma dada sociedade”; ou “sistema de ideias e de juízos explícitos e geralmente organizados que descrevem, explicam, interpretam ou justificam a situação de um grupo social ou de uma colectividade[42]. É igualmente notória, na maioria das definições, a tendência de associar a ideologia à 'classe' ou grupo dominante. O que quer dizer, por outras palavras, que só a 'classe' dominante − aquela que detém o poder − é que pode gerar ideologia, segundo advogam os estudos marxistas das relações sociais. Vendo a questão desta forma, fica de fora a ideia de reconhecer ideologia gerada por grupos desprovidos do poder. Estamos, portanto perante uma atitude reducionista em relação à noção de ideologia. Será, pois, com Fredric Jameson que esta conhecerá uma superação. Na óptica de Jameson, “toda a ideologia, no sentido mais forte, incluindo as formas mais exclusivas da consciência da classe dominante, assim como das classes opostas ou oprimidas, está no seu sentido muito utópico natural”[43]. A elevação do fenómeno da ideologia ao domínio da consciência abre, por um lado, espaço a entrada em cena dos grupos sociais menos expressivos, bem como para a sua percepção como um devir. Não um devir ilocalizável, no entendimento de Pires Laranjeira, mas como manifestação de “uma consciência emergente de classe, resultante da luta entre grupos ou classes”[44]. A leitura de Godido e Portagem chama-nos a atenção para a vigência dessa consciência emergente do grupo dos desamparados, oprimidos, vitimados por um inimigo comum (utilizando as palavras do próprio Jameson), ou, dito de outra maneira, ideologia no seu sentido mais utópico, a “contra ideologia”, para Marilena Chaui[45]. Vemos, portanto, essa consciência emergente a atravessar, o universo diegético nas obras em estudo, funcionando, até, como leitmotiv.

Posto isto, coloca-se-nos a seguinte pergunta: de que forma as insinuações ideológicas se atestam no texto literário? Remetemos a resposta ao próximo capítulo. No entanto, importa frisar que a franca progressão da teoria literária e das ciências de comunicação tem contribuído para uma cada vez maior aproximação entre si. Eis que se tornou lugar comum a concepção da literatura como um sistema de comunicação, sistema modelizante secundário[46]. Conceber, nestes termos, a literatura significa, por um lado, dotá-la de autonomia, e, por outro lado, alargar o campo da interacção com outros sistemas do universo cultural. E daí a relevância da afirmação de que “o texto literário é sempre codificado pluralmente, isto é, codificado, para além de uma determinada língua natural, com a intervenção de outros códigos como o métrico, o estilístico, o retórico, o ideológico[47]”. Na mesma proporção se situa a asserção de Gilberto Matusse, segundo a qual, “a literatura, como sistema, potencia a representação do mundo e, assim também a concepção que, dele se tem”. Para este estudioso de literatura “um texto particular [literário], ao actualizar as virtualidades que o sistema lhe oferece, evoca uma parcela da totalidade que é o mundo, e na superfície dessa evocação são detectáveis signos que indiciam ou explicitam a adesão a determinados valores ideológicos e/ou a rejeição de outros[48]. Pode-se perceber que os signos que indiciam ou explicitam a adesão a determinados valores ideológicos ou rejeição de outros são regulados, no caso particular da narrativa literária, por códigos técnico‑narrativas, tais como o estatuto do narrador, a focalização, entre outros requeridos na configuração do discurso.

 

2.2.      A heterodiegese e a imagem ideológica do narrador

Dentre as personagens possíveis de um romance, há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas funções no processo narrativo e na estruturação do texto − o narrador

(Vítor Manuel de Aguiar e Silva)

 

Qualquer tentativa de obliterar a vigência e a importância do narrador na sintaxe narrativa corresponde à abolição do próprio discurso narrativo. É, pois, ciente deste facto que Aguiar e Silva, apoiando-se nas análises de Platão sobre a diegese, e a mimese poéticas, define o narrador como uma “instância doadora do discurso”[49]. Por seu turno, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes definem o narrador como entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso[50]. Ambas as asserções convergem na reiteração da função do narrador: produzir o discurso. O cumprimento desta função desencadeia um conjunto de relações entre o narrador e a história. A atenção a tais relações leva a que se questione a atitude ou «situação do narrador relativamente ao enunciado que a sua narração produz»[51]. Aqui emerge a questão do estatuto do narrador.

À semelhança do que sucede com outros códigos técnico- narrativos, a matéria do estatuto do narrador reclama um lugar privilegiado nos estudos narratológicos. Após um assinalável domínio na análise e interpretação da narrativa literária, designações como «narrador na primeira pessoa» e «narrador na terceira pessoa» (usualmente empregues nas escolas), «narrador pessoal» e «narrador impessoal» foram alvos de questionamentos, e, até, contestações. Na origem disso está a ineficácia dos termos gramaticais de «primeira pessoa» e de «terceira pessoa», assim como os qualificativos <<pessoal>> e <<impessoal>>.

Com efeito, tais noções geram confusões de ordem conceptual, afectando, por conseguinte, a apreensão do estatuto do narrador. Portanto, exigia-se uma atitude correctiva. E essa foi proposta por Genette, ao afirmar que “a presença, explícita ou implícita, da «pessoa» do narrador só pode estar na sua narrativa, tal como qualquer sujeito de enunciação no seu     enunciado, na «primeira pessoa»”  (o sublinhado é nosso) .

Partindo deste princípio, o autor de Figures III, declara que “a persona do narrador não deve ser caracterizada             e definida em função de formas gramaticais, mas em função do seu estatuto narrativo (sublinhado nosso)[52].  Esta perspectiva, diz com razão Carlos Reis[53], privilegia o enquadramento do narrador em relação à diegese. É no âmbito desse enquadramento, que o narrador deixa transparecer marcas da sua subjectividade no discurso. Ou simplesmente a sua ideologia. Deste modo, põe-se de lado a ideia da neutralidade do narrador, perante os acontecimentos que narra[54]. Importa sublinhar, neste local, que a subjectividade de um narrador inserido na própria história que conta será diferente da manifestada por um narrador de história da qual está ausente; será igualmente diferente da daquele narrador que conta a sua própria história. Dito por outras palavras, o estatuto do narrador determina a gradação da sua subjectividade (ideologia). Neste sentido, justifica-se plenamente o exame do estatuto do narrador em Godido e em Portagem. Para o efeito, adoptamos a tipologia estabelecida por Genette.

a) Narrador homodiegético: narra uma história na qual tomou parte, como personagem secundária. Portanto, este tipo de narrador cumpre dois papéis distintos: o de contar e o de praticar eventos. No entanto, observa Genette[55], se o narrador participou na história que narra, como personagem principal, o seu estatuto é autodiegético.

b) Narrador heterodiegético: por oposição ao narrador homodiegético, o narrador heterodiegético é aquele que narra uma história na qual não tomou parte. Isto é, não integra o elenco das personagens dessa história.

Em Godido e em Portagem, o discurso é doado por um narrador heterodiegético; ausente do plano dos actantes, para Carlos Reis. Daí a relação de alteridade entre si e a história; daí a autoridade, quase inquestionável, desse narrador[56], que exibe um saber não compartilhado com a personagem:

“Ele, que nascera e vivera na escravatura, e pedia a graça de «dominus» e chamavam‑no um revoltado, inflamado de ideias enciclopedistas. Não sabia ler nem conhecia de vista a metafísica mas era partidário de Diderot”, (G.[57] p. 22).

“A família Santos não vivia como as grandes massas miseráveis nem com as comodidades de Henri Ford. Era daquelas famílias condenadas a não ficar na História” (G. P. 23).

Estabelecendo relações alegóricas entre a época de escravatura e a vivência do protagonista, ou fornecendo detalhes sobre a situação económica da família Santos, o narrador critica o esquema de vida montado pelo sistema colonial. Portanto, beneficiando da posição inquestionável que o estatuto heterodiegético lhe confere, o narrador exprime o seu posicionamento ideológico. Para o efeito, serve‑se da situação das próprias personagens[58], quer utilizando um discurso científico-filosófico[59], (pedia graça de «dominus»; ideias enciclopedistas; metafísica; partidário de Diderot), quer emitindo uma opinião depreciativa (Era daquelas famílias condenadas a não ficar na História). Com efeito, se por um lado, com o discurso científico‑filosófico, o narrador produz uma imagem positiva do protagonista Godido, por outro, ao traçar um quadro económico negativo da família Santos (patrões do negro Godido), ridiculariza o branco, hierarquicamente superior, na lógica da preconceituosidade racial. Deduz-se que a primeira atitude do narrador traduz a sua simpatia para com o protagonista, enquanto no segundo se reflecte o contrário para com Santos. Do ponto de vista ideológico, o narrador opõe‑se ao sistema colonial, servido por Santos. Sabe‑se que Santos, para além de ser patrão de Godido[60], é normalmente tratado por chefe, e, “nos dias de serviço, descarrega na negralhada, se o guisado lhe cai resvés no estômago, (G. P. 23).

Ao abrigo da polaridade que se abre entre si e o universo diegético que representa, o narrador censura os hábitos da família Santos:

“A Isaura em vez de beijar o pai, fazia‑o ao primo Artur «De» «E» rico e solteiro, com fábricas de conservas. Ninguém se importava porque era Natal... e era o primo Artur, solteiro e com fábricas de conservas...” (G, p. 26).

A atitude crítica do narrador revela‑se na alusão satírica ao Natal e à riqueza, repetidamente evocada pela analogia “com fábricas de conservas” e pelo adjectivo “rico”.

Colocando sempre a personagem central no centro das atenções, o narrador manifesta, na seguinte passagem, um dos seus mais significativos posicionamentos ideo1ógicos:

“Ao longe pinceladas amarelo‑avermelhadas davam cidade. Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. Hih! Tão bom! Olhó o cidade. − O ambiente ter‑se‑ia rido do seu estado de alma se o soubesse.

Como se não fosse humano um negro pensar que a «vida do negro há‑de acabar» ” (G. P. 38).

Recorrendo ao discurso justificativo[61], o narrador demarca-se do “ambiente” que se teria rido do estado de alma de Godido, e coloca‑se ao lado deste, justificando-lhe os sentimentos com uma intervenção não só eivada de conotações moralistas, mas também inspiradora de esperança[62]: “como se não fosse humano um negro pensar que a «vida de negro há‑de acabar» ”. É, pois, nesse sinal de esperança, expresso pelo tempo verbal, futuro perifrástico: “... há-de acabar”, que o narrador exprime a sua visão da realidade. Visão essa mais utópica do que real: fim do sistema colonial e, consequentemente, fim das hostilidades contra os negros.

Em Portagem, é também principalmente sobre a personagem central (João Xilim) que o narrador heterodiegétíco dedica a sua atenção. Isso acontece, por exemplo, ao lhe traçar os contornos físico‑psicológicos: “Os músculos de criança (João Xilim) responderam com alegria ao esforço violento de segurar firme um espigão...” (p. 18).

“Remexia‑se [João Xilim] inquieto na esteira e tossiu, tentando que algum dos companheiros despertasse. Respondeu‑lhe um, com uma praga. Voltou a tossir, mais forte. Então o homem que praguejara espreguiçou‑se, bocejou ruidosamente (...). Outras pragas acolheram a sua jovialidade” (pp. 22‑23)

Ao apresentá‑lo com uma força e energia (os músculos responderam com alegria) suficientes para responder ao trabalho duro (esforço violento), o narrador constrói uma imagem positiva de João Xilim. Como referimos em relação a Godido, também em Portagem a predilecção do narrador pela personagem central deve‑se sobretudo às afinidades ideológicas entre ambos. É no âmbito dessas afinidades que o narrador promove continuamente a imagem do herói, referindo‑se‑lhe as qualidades, por um lado, ou menosprezando, por outro lado, aquelas personagens que se lhe opõem ideologicamente:

“A vida prossegue igual no Marandal. E só Xilim o distingue do mundo diferente por onde andou, um mundo idêntico ao que patrão Campos e D. Laura conheceram antes de se fixarem ali e que eles próprios talvez já quase esqueceram” (p. 25). O narrador atribui, nesta passagem também dedicada a João Xilim, uma amnésia de fixação ao Campos. Muito embora o faça de um modo duvidoso, denunciado pelo apelo ao discurso modalizante[63]: “... eles próprios (os Campos) talvez já quase esqueceram”. Enquanto em João Xilim reconhece a capacidade de memorização: “... Só Xilim o distingue do mundo diferente por onde andou...”­

Embora as afinidades ideológicas justifiquem a afeição do narrador pela personagem principal, aquele, gozando da relativa liberdade que o estatuto heterodiegético lhe confere, censura, ainda que de forma ténue, algumas das atitudes da personagem principal:

“E explicaria o porquê de tudo. Mas acha que não vale a pena. Não é que ninguém iria compreender essas coisas mesquinhas que são a razão do cansaço da vida toda de João Xilim?” (p. 107).

“E nessa noite em que inventa uma infância para deixar aos outros.” (p. 160).

Desde a resposta em tom interrogativo, até ao sentido artificial (pouco consistente) do termo “inventar”, passando pelo valor insignificante que a expressão “coisas mesquinhas”, o narrador manifesta a sua decepção, face a actuação do herói, que, como referimos na apresentação do corpus, redunda num ciclo de aventuras mal sucedidas. Portanto, gozando do estatuto heterodiegético, o narrador permite-se a sancionar algumas investidas da personagem principal. Algo inesperável, quando se trata de um narrador homodiegético, que se limita apenas a testemunhar os acontecimentos, permanecendo, portanto, como exterior em relação à interioridade e à motivação profunda dos actos da personagem principal, como observa com justeza, Aguiar e Silva.[64]

Em Godido, no lugar de recorrer ao discurso sancionatório, o narrador opta por uma atitude proteccionista, quase paternal, em relação à personagem principal. Com efeito, é notória a preocupação em colocá-la na condição de vítima do sistema, ao qual imputa todos os defeitos, todas as falhas, uma vez ter sido este mesmo sistema que a moldou.

Portanto, produzido por um narrador ausente do universo diegético, o discurso em Godido e em Portagem é substancialmente marcado pelas intervenções desse narrador, que, não podendo ser julgado dado o seu estatuto heterodiegético, protege, critica, opina, comenta de forma desinibida sobre a realidade que representa. Na acção do narrador, frequentemente atenta à personagem central, projecta‑se a sua imagem ideológica, plasmada desejo (visão utópica) de pôr fim ao sistema colonial de exploração.

 

2.3. A focalização interna e a ideologia da personagem

 

O que distingue o discurso narrativo literário dos restantes (por exemplo, o discurso científico) é o facto de aquele ser produzido por um narrador fictício, que para o efeito acciona um conjunto de artifícios técnico‑narrativos, dos quais a focalização é parte integrante.

A focalização constitui matéria indispensável para a teoria e análise da narrativa literária.

Introduzido por Gérard Genette[65], o termo focalização designa o mecanismo de regular a quantidade e qualidade de informação diegética apreendida/captada, para ser transmitida pelo narrador. O termo abstracto focalização vem a superar as anteriores noções de “ponto de vista” (Percy Lubbock), “visão” (Jean Pouillon), “restrição de campo”, (George Blin), “aspecto” (Tzvetan Todorov), todas padecentes conotações visualistas, decorrentes da sua natureza pictórica[66].

O termo focalização ultrapassa o alcance conseguido pelos anteriores, pois não contempla apenas a apreensão da informação visível, abrange também o sensorial, o psíquico, o moral, o intelectual, em suma: o consciente e o subconsciente do narrador e/ou das personagens. A outra vantagem conseguida pelos estudos narratológicos, com a introdução do termo focalização, tem a ver com a abolição da rigidez na escolha e utilização, pelo narrador, de um certo ângulo de visão[67]. Efectivamente, demarcando-se da rigidez inflexível e do reducionismo das perspectivas anteriores, o termo focalização concede ao narrador a liberdade de diversificar os elementos focalizadores (personagens e ele próprio incluído) dentro do discurso.

No entanto, embora elogiada por vários estudiosas como uma verdadeira inovação, a abordagem genettiana de focalização não escapou a alguns reparos. Por exemplo, Aguiar e Silva qualifica de “feliz” o termo focalização, em virtude de este dar conta da “relação entre o narrador e a história; o narratário e o leitor[68]”. Porém, o autor da Teoria da Literatura acusa Genette de pretender mutilar essa relação ao admitir o tratamento, em termos práticos, da problemática da focalização desligada da questão do estatuto. “Como se pode considerar idêntica a focalização do romance em que o herói conta a sua história e a focalização do romance em que a história é contada por um narrador omnisciente? - questiona Aguiar e Silva, pondo em causa a postulação de Genette, que defende identidade das focalizações nas duas situações, à prior, diferentes, do ponto de vista do estatuto do narrador. Efectivamente, à alteração do estatuto do narrador correspondem variações de vária ordem na vigência das modalidades de focalização, sobretudo quando estudada do ponto de vista psicológico, ético e ideológico[69]. Por seu turno, Carlos Reis elogia as reflexões de Genette sobre a focalização, porque, no seu entender, tendem “a conceder ao narrador uma liberdade de acção”[70]. Porém, também se opõe ao apagamento das relações mútuas entre a focalização e o estatuto. Discorda igualmente das noções de “narrativa não focalizada” e de “focalização zero”, propostas por Genette, em detrimento da focalização omnisciente. Para Carlos Reis, aquelas noções evocam não um narrador investido de poderes ilimitados (narrador omnisciente), mas sim uma modalidade de discurso de ficção destituída do domínio de qualquer perspectiva.

De referir que a discussão em torno da focalização constitui, até hoje, um espaço aberto. Contudo, parecem-nos, concordando com Carlos Reis, questionáveis as noções genettianas de “narrativa não focalizada” e de “focalização zero”. Na medida em que a serem assumidas literalmente, deparar-se-ia com um novo problema: a não regulação da quantidade e qualidade de informação diegética, em determinados momentos do discurso narrativo. Por isso, a modalidade de focalização omnisciente, evitada por Genette, afigura‑se‑nos indispensável. Aliás, retirar ao narrador a função focalizadora equivale, a nosso ver, a ignorar um dos seus papéis fundamentais: manipulador da informação diegética. Portanto, a modalidade de focalização, nas suas três vertentes (interna, externa e omnisciente), assume, neste ensaio em particular, um papel de vital importância, conforme demonstramos a seguir.

A situação em que o narrador apreende e conta os eventos da história, sob a mediação de uma personagem inserida nessa história, denomina-se focalização interna[71]. Ou seja, adoptando a

Focalização interna de uma determinada personagem, o narrador submete‑se aos conhecimentos e capacidades dessa personagem focalizadora. Aqui afirma‑se o desempenho da personagem[72], na configuração do discurso narrativo.

Como referimos anteriormente, em Godido evoluem personagens cuja distinção se processa a partir de um operador racial. Godido, personagem responsável pelas principais projecções  coordenadas temáticas e ideológicas da obra, é um negro pobre, que emerge entre outros negros de condição também precária. Portanto, fazendo alusão aos ensinamentos de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, podemos afirmar que é em função da personagem Godido, que a história existe em Godido. O que quer dizer, por outras palavras, que Godido desempenha a função de herói.

Tendo sobrevivido a várias perspectivas teóricas (por exemplo, o funcionalismo de Propp, a semiótica greimasiana[73]) o conceito de herói assumiu nos anos 50, tal como sucedeu no período áureo do Romantismo, uma importância significativa. Tal é o que transparece nas seguintes palavras de Lukács: “no romance, a psicologia do herói é demoníaca; assim, o conteúdo do romance é a «história dessa alma que vai pelo mundo para aprender aconhecer‑se, procura aventuras para nelas se testar e, por essa prova, atinge a sua medida e descobre a sua própria essência»[74]. Deste modo, interessado em representar a vivência interior, isto é, psicologia do herói, o narrador adopta a focalizarão interna. Vivência essa marcada por incursões ideológicas, enquanto práticas que visam desmistificar as contradições vividas pelas personagens[75]. O que quer dizer que a análise da focalização interna permitir‑nos‑á deduzir as posições ideológicas da personagem focalizadora, enquadrada nos eventos e ambientes.

A fórmula de focalização, assevera Genette, nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve[76]. Tal é o caso, por exemplo, da seguinte passagem textual do monólogo interior − prova absoluta da vigência da focalização interna na narrativa[77]:

 

“Iria para a cidade, para a civilização, onde não haveria certamente nem brancos a chicotear, nem pretos a obedecer. A civilização deveria ser uma coisa melhor, com sabor a «matapa» ou toucinho-do-céu”, (G. p. 20).

 

Enunciada pela voz do narrador, a sensação positiva que Godido tem da cidade traduz‑se na forma optimista como ele imagina esse espaço urbano. É o que indica o qualificativo melhor que, embora transportando algum receio assinalado pelo vocábulo deveria, (discurso modalizante), sugere uma impressão boa da civilização urbana, ora imaginada. A mesma sensação aparece sugestivamente ilustrada pela analogia civilização/matapa – toucinho-do-céu[78]. Portanto, a civilização, imaginada por Godido, mas interpretada pelo narrador[79], não seria desagradável, como certamente não o são a matapa e o toucinho-d- céu. Deste jogo da imaginação da personagem/interpretação do narrador filtram-                      -se os posicionamentos ideológicos da personagem focalizadora Godido. Este denota desconhecimento do espaço e ambiente urbanos, completamente novos para si. Porém, passado algum tempo, o cenário alterou‑se:

 

“Ali [na cidade] estava toda uma doutrina de raças. Agora compreendia que ser negro era algo mesquinho que lepra. Era cancro entre os civilizados”. (G. p. 21)

 

Com as expressões doutrina de raças e ódio de raças, o narrador traduz a visão de Godido sobre a civilização urbana: centro pedagógico da prática de racismo promotor da desqualificação do negro, segundo sugerem os seguintes segmentos, elaborados com o auxílio do discurso figurado[80]:

 

“Ser negro era ser algo mais mesquinho que a lepra: era ser cancro entre os civilizados” (G. p. 21).

Da comparação mais mesquinho que a lepra, apreende‑se urna desqualificação do negro, tido como mais horripilante do que a lepra. E do paralelismo metafórico constituído pelos vocábulos negro e cancro reforça a condição de coisa do negro, imposta pelo sistema racista colonial. Este é, portanto, ideologicamente, denunciado e contestado.

Aparentemente mais cruel na cidade do que no campo, a discriminação racial leva o protagonista a experimentar a adesão ao mito do eterno retorno:

“Suspirou pela vida primitiva e quis fugir” (G.p. 21). O desejo de regressar à terra de origem (senzala) nasce do facto de Godido ter começado a      compreender a ordem social em sua volta: marcada pelo conflito branco/negro. Afinal, ordem essa idêntica a que deixou no campo:

 

“Godido detestava aquela vida (...) Não, não! Odiava aquela vida rastejante, a imagem do branco a esquartejar a sua mãe física e moralmente” (G. P. 20). Acompanhando‑o de perto e com a confiança que lhe proporciona a instauração da focalização interna, o narrador penetra na interioridade de Godido e busca matérias sugestivamente ideológicas. É o que justifica o recurso ao discurso valorativo, caracteristicamente avaliativo e, por isso, empregue na “atribuição de qualidades ou defeitos, valor ou demérito aos factos e personagens[81]”: termos qualificativos como rastejante, esquartejar, detestava, odiava remetem para um quadro triste da interioridade da personagem central, resultante da brutalidade do branco.

Facto curioso é que da visão predominantemente protestatária, o herói adquire paulatinamente a consciência de pertença a um espaço com o qual se identifica:

 

“ - Eh! Zafania! Buya, venha brincari co gente, a cantari cosa do nosso terra. Anda cá quando não minha coração zanga cum você. Mesmo!” (G. P. 24)

“O Natal assemelhava-se ao lobolo. Não. Faltava <<tombazana>>, e só havia comida e vinho como no <<lobolo>>. Mas o Natal lembrava-lhe o <<lobolo>>” (G. p. 25)

 

Quer na passagem dialógica, quer na semi-monológica, proliferam termos específicos de um espaço também específico, reclamado: bya, lobolo, tombazana. Semelhante efeito produz o registo linguístico precário de Godido, propositadamente permitido pelo narrador: cosa do nosso terra; brincarri co gente cum você. Mesmo. Por outro lado, num esforço notável de representar fielmente a interioridade da personagem focalizadora, o narrador abre espaço para um registo sem-monologado, ao abrigo do qual desloca o sentido pragmático da festa do Natal − urna cerimónia de elevado valor na cultura e tradição ocidentais ‑ para o lobolo, também cerimónia de valor reconhecido, porém na cultura e tradição moçambicanas. Trata-     -se, portanto, de um procedimento intencional, da personagem e também do narrador de representar positivamente o espaço cultural e tradicionais locais. Referindo-se a manifestações similares, Russel G. Hamilton afirma que a exaltação de valores nacionais reflecte uma forte dose de nativismo[82]. E como que a reforçar o discurso exaltativo, o narrador recorre parodia o espaço cultural europeu:

“Os patrões costumavam contar muito a história do «mufana» branco que nascia todos os anos naquela data, e havia de tornar bons os que nele acreditassem” (G. p. 25).

Apesar da insistência dos patrões em promover a imagem de Jesus Cristo, contando muito a sua história, para pôr doida a “a maior parte da gente não o percebia; confundia‑o com pedaços de gesso e arte, que havia nas igrejas. Mesmo entre pessoas cultas, poucas o entendiam. Eram os burros que lhe chegavam mais frequentemente porque não precisavam de compreendê-lo; [Jesus Cristo] tinha a mania do jogo de cabra-cega. E se calhar não tinha nada. Porque talvez uns sujeitos brincalhões o inventassem humanidade” (G. p. 25).

Desde os qualificativos mania e brincalhões, ao adjectivo doida, passando pelo sentido de uma certa artificialidade conotada pela forma verbal inventar, denota‑se uma progressiva dessacralização da imagem de Cristo criador de harmonia para a humanidade. Com efeito, este papel de criador é substituído pelo de endoidecedor.

Detendo‑se aos movimentos da personagem focalizadora, o narrador atenta nos acontecimentos susceptíveis a uma abordagem ideológica. Tal sucede, por exemplo, quando Godido enfrenta outras personagens como o revisor Aguiar, o senhor Antunes, o revisor quase homem:

 

“O senhor Aguiar está em todos os caminhos dos pretos a mandá‑los marcar passo ou fazer meia volta e galgar para sua condição de escravos” (G. p. 30).

 

Recorrendo à hipérbole está em todos os caminhos dos negros,     o narrador refere‑se à acção condenável de perseguição implacável aos negros. Os vocábulos mandar e escravos traduzem a linguagem do sistema colonial, cuja contestação enforma a ideologia ainda na sua forma utópica. Portanto, a temática da contestação – fonte das irrupções ideológicas nos textos em análise – também se desenvolve sob a forma de denúncia de práticas conotadas com o sistema colonial: mandante/mandado, patrão/empregado. No mesmo diapasão, Antunes, devido ao racismo e violência, causa antipatia a Godido:

“Suca negra! Cadela! Safa‑te quanto antes. Sua...;  ... quase lhe amassou os seios com a manivela do automóvel” (G. p. 32).Todavia, a consciência cada vez mais sólida de Godido alarga-lhe a visão do mundo. Isto é, começa a compreender que o racismo – principal causa da sua crise existencial – é uma criação e que por isso urge eliminá-lo:

“Aquelas cenas gotejando vingança formavam uma massa pastosa que estaria em todos os negros e se tornaria rocha onde o senhor Aguiar se quebraria. A rocha era também o revisor quase homem” (G. p. 30).



Se bem que o narrador interfira sempre na subjectividade da personagem focalizadora, momentos há em que essa interferência cessa. Isso acontece, por exemplo, no excerto Sonho de Negro:

 

“Godido estoirava raiva, a dois metros, por trás do eucalipto; e, quando Antunes ergueu de novo a manivela, o negro [Godido] atirou‑se.

Como música de fundo, gritos de mulher e homem à mistura; nos bastidores a negralhada hirta, embasbacada, a ver. O corpo sujo da negra ali defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam.

O corpo sem vida atirou‑o ao acaso, para o automóvel, (G. p. 33).

 

Repartida entre a focalização interna e externa[83], esta passagem representa o desejo (sonho) de Godido em ver abolido o sistema, ora contestado. Com efeito, a subjectividade onírica de Godido não se limita apenas no ódio − estoirava raiva − , mas também na prática de uma acção concreta, que porá fim ao sistema colonial: o corpo sujo da negra ali defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam; o corpo sem vida, atirou‑o ao acaso, para o automóvel. Se se tomar este cenário como demonstração de uma acção de luta ganha por Godido, pode-se afirmar que ele antevê um equilíbrio social, isto é, um modus vivendi sem desigualdade económica, social nem racial, no dizer de Manuel Ferreira:

“Amanhã não haveria negros. Só HOMENS por toda a parte” (G. p. 34).

A hipérbole por toda a parte, por um lado, os caracteres maiúsculos na palavra HOMENS, por outro lado, acentuam a ausência de discriminação, num futuro breve, enunciado pelo advérbio temporal Amanhã, que, ao mesmo tempo funciona simbolicamente como utopia ideológica da personagem central.

Se bem que esteja fora de dúvidas que, enquanto detentor da facalização que orienta a representação narrativa, Godido beneficia de condições privilegiadas para manifestar a sua subjectividade, isso não significa que as outras personagens, com as quais actua, assumem uma posição de neutralidade. Pelo contrário, elas manifestam, também, a sua subjectividade, embora modestamente:

Godido não percebia aquela atitude e interrogava os patrões.

− Porque és negro e de negro não passas − respondiam‑lhe eles com sorrisos (G. p. 21).

A resposta zombeteira dos patrões − respondiam‑lhe com sorrisos − revela a insignificância de Godido, e das respectivas inquietações, na óptica dos patrões, interessados em manter a ordem social de segregacionista.

A análise de segmentos textuais, à luz da focalização interna de Godido, permitiu-nos examinar a sua subjectividade. E concluímos que a cosmovisão de Godido foi progressivamente ganhando solidez. Com efeito, na fase derradeira da acção, Godido, põe em causa o sistema colonial em si, não o aspecto particular da discriminação racial, embora fortemente marcado no texto.

Como referimos atrás, em Portagem, uma personagem destaca-se: João Xilim. Funciona como o ponto cardeal por onde passam os vectores que configuram funcionalmente as outras personagens[84]. Atravessado por problemas de ordem existencial, como por exemplo, a indefinição da sua raça e a consequente rejeição social, João Xilim encontra na fuga a solução para todos os seus problemas. Com efeito, desencadeia um ciclo de aventuras atribuladas. ­O conteúdo de Portagem, lembrando Lukács, está nessas aventuras. Face a este aspecto, a focalização interna de João Xilim atrai a nossa análise, pois Xilim é a personagem detentora do controlo da história, e, por conseguinte, fonte importante do foco de irrupções ideológicas.

Vivendo num contexto social marcado por relações dicotómicas branco/negro (mulato), patrão/empregado, explorador/explorado, mandatário/mandatado, rico/pobre, João Xilim mostra‑se, desde cedo, preocupado em examinar e compreender a sua identidade racial: “Porquê eu não sou preto como toda a gente?” (p. 21).



Confrontado com o cenário que explicaria a sua origem racial (E João Xilim descobriu que a mulher que estava com o patrão Campos era a negra Kati, sua mãe), João Xilim assume uma atitude de irreverência para com o meio que o envolve: “Murmurava raivosamente de vez em quando: −Deixa estar que eu hei-de ser homem!... A descoberta da sua origem racial − filho de pai branco (Campos) e mãe negra (Kati) −  leva-o a abandonar Marandal, sua terra de origem, fugindo para “onde ninguém o conhecesse nem pudesse saber a sua vergonha” (p. 24). Facto importante, do ponto de vista da comparação, é que cenário similar acontece em Godido. A personagem principal, Godido, decide ir conhecer a cidade por se opor à vida da senzala, onde nasceu: “barranco a mandá e os preto como boi a puxá, a simiá até fim” (G . p. 20) . Odiava aquela vida rastejante (G. p. 21).

À medida que João Xilim conhece mais e diversos espaços sociais, a sua cosmovisão amplia-se:

“Embarcou como moço de limpeza num cargueiro que se destinava a um porto do sul. Ali deram‑lhe licença para desembarcar e viu os seus irmãos mulatos e negros que trabalhavam no cais e nas fábricas e eram tão subtraídos à civilização como os negros do Marandal. Viu os seus irmãos mulatos e negros que imitavam os brancos no vestuário, na linguagem e nos costumes. Viu os seus irmãos negros contratados para irem trabalhar nas minas no outro lado da fronteira. Viu os homens brancos que moravam nos arredores da cidade em companhia de mulheres negras e andavam fazendo filhos mulatos para crescerem proscritos entre brancos e negros. Viu os homens brancos que viviam em casas bonitas e se deslocavam de automóvel e tinham todas as comodidades. Viu brancos que eram compreensivos e não se pareciam com patrão Campos. Viu os grandes navios no cais carregando mercadorias e embarcando gente para terras desconhecidas. E viu que o menino do Marandal estava ainda crescendo para ser um homem sem lugar próprio na sua terra, porque fugira do Marandal e era filho da negra Kati que se entregara ao patrão Campos e fora moleque da menina Maria Helena. E o mulato continuava a precisar de fugir” (p. 26).

O valor semântico do verbo “ver” (presenciar), o tempo gramatical pretérito perfeito: (consumação dos factos) confirmam o contacto directo e factual de João Xilim com o cenário das desigualdades sociais. Portanto, produzido a partir das rememorações da personagem, ao abrigo da instauração da sua focalização interna, o segmento em apreço reflecte, do ponto de vista da ideologia, a percepção, por João Xilim, desse cenário, graças ao alargamento da sua visão do mundo. Porém, por vezes, à semelhança do que referimos em relação a Godido, essa visão se submete às frequentes opiniões do narrador. Este, para além das qualidades que o distinguem do herói, leva a vantagem de ser entidade única responsável pela organização e modelização do universo diegético. Portanto, mesmo o discurso das personagens (quer sob a forma de diálogo, quer sob a forma de monólogo) está inserido no discurso do narrador[85].

Referimos, acima, ao amadurecimento da cosmovisão de João Xilim. É, pois, à luz da mesma cosmovisão que se explicam determinadas acções e reacções da personagem principal, nomeadamente, a revolta contra a “nova tentativa de exploração dos negros da sua terra” (p. 32); o acto violento contra o mulato engajador (p. 32) e contra o chaveiro prisional (p.76). O mesmo sucede quando, ao abrigo da sua focalização, o protagonista enfrenta determinados ambientes, eventos e personagens. Isso transparece, por exemplo, quando João Xilim censura as condições de trabalho nas minas de Kaniamato:

“Kaniamato, 10 de Fevereiro

Meu amigo eu escrevo estas linhas para dizer que tou aqui (...) a vida aqui é boa mas cada vez estes gajos só quer tirar as forças dos nossus corpo para fazeri o grande dinheiro deles á aqui mesmo grande zatice. (...) Teu amigo que manda muito abraço João Xilim” (P. 55)­

Não obstante a impressão positiva (vida boa) que teve de Kaniamato, João Xilim insurge‑se contra os desequilíbrios naquele local: (à aqui grande zatice).

Certas personagens, contempladas pela focalização interna do protagonista, despertam neste um sentimento de simpatia ou de antipatia, conforme as motivações ideológicas subjacentes à subjectividade de cada uma. Assim, perante personagens como a avó Alima (João Xilim sente remorsos de não ter feito mais companhia à avó que para ele agora representa um símbolo, p.15), Juza (O juza é bondoso mas não vai perdoar, p.134) cujo temperamento não é adverso ao seu, João Xilim manifesta  alguma  simpatia, expressa através do uso dos termos qualificativos símbolo e bondoso. No entanto, as personagens de orientação ideológica adversa à do protagonista mantêm com este uma relação de antipatia. Tal é o que se verifica nos exemplos seguintes:

           

“Que se lembre [João Xilim] nunca falara com patrão Campos. Receara‑o sempre, fugindo à sua presença” (p. 38).

Acentuada pelo recurso à linguagem prototípica patrão/empregado, a polaridade entre João Xilim e o branco Campos (seu pai) marcou toda a existência de ambos. Será, certamente, na sequência disso que “João Xilim sente que o morto (pai) o repudiaria como em vida sempre o renegara “e“ fica nauseado” (p. 39).

Por seu turno, aproveitando‑se da “vantagem racial”, o branco Borges abusa as mulheres mulatas, (cf. pp.134 e 149). Procedimentos desta natureza representam uma afronta para João Xilim. Aspecto assinalável desse facto é que o narrador, fiel à personagem focalizadora, adere incondicionalmente à subjectividade desta: “O Coxo [Borges] não tem nada que se lhe aproveite a não ser a lábia para a envaidecer...” (p. 134). O qualificativo coxo, transformado em nome, a conotação negativa sugerida pelo termo lábia configuram a imagem desqualificada de Borges, diante da subjectividade da personagem principal, corroborada, como dissemos pelo narrador. Outras persongens que, à semelhança de Campos e Borges, não merecem a simpatia da personagem central são: 1) o cantineiro Esteves: “... regressara [João Xilim] à cidade para se vingar do dono da casa do Caju” (p. 79)  ; 2) Abel Matias: “[João achava aquele tipo [Abel Matias] esquisito” (p. 123); 3) o mulato claro que andou no liceu: “       vocês não acredita neste mulato gingado! Vida dele é de branco! Vida da gente é de negro!” (p. 112). Palavras como esquisito, vingar, gingado, afloradas de desprezo e ódio, espelham a aversão de Xilim pelas personagens descritas.

Dissemos, em Godido, que a par da personagem focalizadora gozar de uma posição privilegiada, para registar a sua subjectividade no discurso do narrador, desfila a subjectividade das personagens sem função focalizadora. Ora, situação similar ocorre em Portagem. Por um lado, figuram personagens cuja subjectividade adere à da personagem focalizadora:

“Esse homem [João Xilim] que aí está sentado, é um homem de cor, nascido da fusão de duas raças que, quantas vezes, igualmente o desprezam. Sei que, só por esse motivo, mereceu a antipatia de muita gente” (p. 64).

“... mas a grande culpa não foi dele [João Xilim]. Foi daquela desgraça de nascer mulato” (P. p. 67).

Como se pode ver, as intervenções do Dr. Ramires (primeira transcrição) e de Rafael (segunda) imputam a sinuosidade da trajectória de Xilim à discriminação racial.

 

Por outro lado, perfilam personagens cuja subjectividade desafia a da personagem focalizadora:

“Este moleque parece-me esperto demais. Além disso, é mulato. E, não gosto nada desta raça. São mais falsos que os pretos” (p. 17).

“... e você que é, então? Filho desse branco que anda a explorar os   homens da sua terra” (p. 32).

“Alguns negros sentem um certo rancor contra João Xilim. E fazem surdamente, alusão à ignomínia da sua cor mestiça a que atribuem a possibilidade de todas as cobardias e traições” (p. ­33).

“... o morto o repudiaria como em vida sempre o renegara” (p. 39)

“Não sujo as minhas mãos nas ventas de um mulato” (p.73)

“Pretos ou brancos é que deviam ali estar, bem definidos nas suas origens, o mulato representa para ele, um elemento duvidoso...” (p. 74)

Uma vez mais, o discurso valorativo domina a representação da subjectividade das personagens. São os casos, por exemplo, dos termos falsos, branco, cobardias, traições, mulato, renegara, duvidoso, todos atingindo, depreciativamente, a personagem focalizadora, João Xilim. Como bem se nota, a aversão por esta personagem, devido ao estigma racial, não se restringe apenas aos brancos, abarca também os negros e os mulatos. Trata-se de um fenómeno reconhecido pela própria personagem Principal: Nossa raça toda a gente passa de lado (p. 53). Um dado que, do ponto de vista ideológico, reputamos importante nas relações quer de simpatia, quer de antipatia com João Xilim, é de elas estarem vazados no elemento raça: mulato, ou seja, resultado de duas raças puras: a branca e a negra. Este facto faz que João Xilim se sinta condenado à rejeição social, e por isso, sujeito a um percurso atribulado. Enfim, é uma situação que o leva a ter “medo de ver alegria” (p. 107). Portanto, em alguns instantes da narrativa, Xilim tende ao conformismo irónico:

“Mal de mim é ser mulato. Nossa raça toda a gente passa de lado (…). Branco está sempre a pensar que mulato é filho dum crime. E eu também estou quase a pensar que talvez é mesmo” (p. 53)­

Nesta passagem de pura manifestação de subjectividade do protagonista de Portagem, retomando a linha de comparação, destaca-se a forma peculiar como João Xilim interpreta o quadro social que o cerca. Com efeito, enquanto Godido prevê o uso de uma força para inverter o rumo das coisas, João Xilim concentra-se apenas na denúncia/contestação do sistema em voga, ora culpabilizando-se: “mal de mim é mulato” (p. 53); ora, simulando uma hesitante adesão à visão colonial:  “Branco está sempre a pensar que mulato é filho dum crime. E eu também estou quase a pensar que talvez é mesmo” (p. 53)­. Quer a ironia definitória (emprego do presente do indicativo é), quer a atitude vacilante (propiciada pelo recurso aos termos quase e talvez, do discurso modalizante), sublinham o sentido escarninho dessa adesão. Trata-se de, através de uma estratégia de reiteração, denunciar e contestar a discriminação racial, cristalizada e estereotipada, nos anos 50, no Moçambique colonial.

Ainda no contexto do discurso contestatário, pela via da reiteração da sua raça, João Xilim interpreta a irresistibilidade de Luisa (sua esposa) e de Beatriz, perante as atracções do branco, como uma consequência directa do seu traço racial, o responsável de todos os males: “ − Mulata é assim mesmo: olhar de branco, levanta as saias; palavra bonita de branco com uma prenda na mão, abre as pernas” (p.134).

O verbo ser no presente do indicativo é e o vocábulo de realce mesmo transportam o sentido inabalável da visão de Xilim, no respeitante à raça mulata. A leviandade, por exemplo, expressa pela sequência metafórica (discurso figurado) “levanta as saias” e “abre pernas” deve‑se ao defeito da raça mulata.

A contestação do sistema colonial através do apego irónico à origem racial prolifera em quase todo o texto, constituindo, portanto, uma característica peculiar da personagem central. Facto evidenciável é que, ao invés do que se verifica em Godido, o protagonista em Portagem, embora também tutelado, goza de significativa autonomia, diante da imponência do narrador. Isso ocorre com regular frequência nas rememorações dos pedaços da sua vida:

“E recorda‑se que fora naquele verão que se apercebera de uma realidade que viera a marcá‑lo do ventre da sua mãe. Ele não era negro como a outra gente nascida no Marandal (p. 21); E recorda‑se num instante de tudo o que ficou para trás. De patrão Campos, embrulhado com mãe Kati (..,); de Maria Helena, impondo‑lhe o exílio; do fogueiro Jaime, chorando a infância insultada; de Luisa e do cantineiro, apertados num abraço que o atraiçoou; do Dr. Ramires, falando no tribunal da infelicidade dos mulatos desde a barriga da mãe” (p.70);  “ Mas a sua vida não tem nada que contar aos outros, a não ser que um branco destruiu a alegria da sua infância, que andou embarcado” (p.106);

“Todas as raivas da sua vida passam‑lhe uma a uma, pela memória. Não, não tem nada que se arrepender. Cumpriu fielmente seu destino. Foi sempre ele, o mulato, um homem clandestino na barriga da mãe, moleque em casa de D. Laura, menino da infância de Maria Helena, testemunha do abraço da negra Kati e de patrão Campos, capataz da mina do Marandal, amante ilegítimo, emigrante sem passaporte, número extra dos sentenciados negros, contrabandista, vingador despercebido” (p. 160).

Na transcrição destes segmentos textuais longos, moveu-nos o interesse de ilustrar alguns dos vários momentos do passado do protagonista, contínua e escrupulosamente rememorados. O narrador representa-os, seleccionando um vocabulário específico não só para revelar o passado interior da personagem central, mas também para exprimir determinados posicionamentos ideológicos. Estes repartem-se entre a subjectividade da personagem e do próprio narrador. Por exemplo, expressões como: “não era negro como a outra gente...; infelicidade dos mulatos desde a barriga da mãe; mulato; clandestino, remetem ao atribulado destino, marcado pelo traço racial − esse preconceito geneticamente examinado, como afirma, em tom sarcástico, Carmen Lídia de Sousa Dias.



Afinal, como temos vindo a vincar, a ideologia do herói assenta no conflito de raças, apesar de nalguns momentos a personagem parecer indiferente a isso:

“Não, não tem que se arrepender. Cumpriu fielmente com o seu destino” (p.160).

 

Com os advérbios de negação não e de modo fielmente (discurso valorativo), o narrador representa um Xilim aparentemente tranquilo e conformado com o seu destino. Mas, mais do que uma aparência, depreende‑se, nos momentos finais da história, a seriedade com que João Xilim encara a questão de raça:

“O erro fundamental, que comprometeu a paz da sua vida, foi o abraço da mãe Kati e de Patrão Campos, esse abraço que fez um ser duma raça nova infamada. Tudo o que se passou depois, o que pesou sobre o seu coração e manchou as suas mãos e os seus olhos proveio desse erro. Por toda a parte ele encontrou gente que anda à toa, rejeitada pelos brancos e pelos negros. Deserdada pelas duas raças puras” (p.160).

 

Da referência à origem da raça mulata, pela expressão eufémica abraço da mãe Kati e de patrão Campos, à alusão aos efeitos fúteis dessa raça nova, infamada, gente [mulata] (...) rejeitada pelos brancos e pelos negros; deserdada pelas duas raças puras, o narrador representa a auto‑análise interior de João Xilim. Deste acto denota‑se a intenção em tomar a origem racial por todas as atribulações que marcaram toda a sua existência. Portanto, reforça-                      -se a tese de que João Xilim se opõe à prática colonial de discriminação racial, reiterando‑a. Aliás, é significativo o facto de ser no fim da história que se define, de forma menos ambígua, o objectivo que norteia a acção do herói, ainda que seja uma definição contaminada pela subjectividade do narrador, cuja função de assessor sempre preservou:

“Mas ele esconderá dos filhos a memória dos pecados das negras Katis e dos patrões Campos. E eles crescerão como se a raça mestiça não tivesse nascido de um abraço fortuito” (P. p. 160).

Transparece, nesta passagem da subjectividade de João Xilim, a visão utópica, remetente a de um quadro social sem discriminação, que passará necessariamente pela ruptura da ordem existente, a do sistema colonial. Ruptura essa visionada na intimidade misturada com paixão secreta entre o mulato João Xilim e a branca Maria Helena:

“Quase ao mesmo tempo, a  menina [Maria Helena] e o moleque [João Xilim] tiveram a intuição de que se sentiam um ao outro como promessa de mulher e homem (...). Se, por acaso, se tocavam, ficavam enleados e suspensos” (P. p. 18).

E, distantes um do outro, essa paixão transforma-se em saudade: “... Começara a doer‑lhe a saudade de Maria Helena. Por toda a parte e por todo o momento, a sua lembrança o perturbava (...). Mesmo que não visse a menina, estaria mais perto dela, encostaria a cara ao vidro da janela do seu quarto e tinha a certeza de que seria capaz de ouvir bater o coração dela” (P. p. 18‑19).

Do ponto de vista ideológico, a relação de intimidade entre Maria Helena e João Xilim satiriza uma das principais facetas da ideologia colonial: a discriminação racial. Aliás, aquela, tal como Xilim, deplora a segregação racial: − Desculpem-me, não pensei que a vossa misericordiosa missão distinguisse raças... (P. p. 93). Por outro lado, levada ao extremo quando ambos se envolvem num acto sexual, no sétimo capítulo da obra, essa relação pode ser interpretada como um indício de uma síntese futura de ambas as raças. A síntese que consubstancia a visão utópica não racial, quer de João Xilim, quer de Godido, como referimos nas páginas anteriores deste texto.

Em função da análise do discurso produzido sob a orientação da focalizacão interna, apurámos que, em Godido e em Portagem, as personagens principais comungam a mesma linha ideológica: utopia não racial, ou seja, clamam pela abolição do sistema colonial de discriminação.

 



























































A focaliziação omnisciente e a ideologia do narrador

Consagrada e difundida por narratologistas, a expressão focalização omnisciente designa, tomando por empréstimo os termos de M. Bal, a opção de o narrador de se auto-indigitar para desempenhar a função de focalizador. Portanto, adoptando a focalização omnisciente, “o narrador configura‑se como um autêntico demiurgo que conhece todos os acontecimentos na sua trama profunda e nos seus pormenores, que sabe toda a história da vida das personagens, que penetra no âmago das consciências como em todos os meandros e segredos da organização social[86]. Isto equivale a dizer que o narrador omnisciente detém um conhecimento ilimitado da história. Opondo‑se a esta posição, Genette não inclui, na sua conceptualização, a modalidade de focalização omnisciente. Para o autor de Figures III, a «omnisciência» é um termo “qui, en fiction pure, est littéralement, absurde (sublinhado nosso). Ao invés da omnisciência do narrador, Genette adopta as noções de “narrativa de focalização zero” e “narrativa não focalizada”. Qualquer uma destas veda ao narrador a função de focalizador. Deste modo, este não está habilitado a assumir a posição de transcendência em relação à história que conta. Não obstante a objecção de Genette, o termo focalização omnisciente, decorrente da noção de narrador omnisciente[87] em uso na crítica anglo‑saxónica, mantém‑se aceite em narratologia. Aceite porque, apesar de rejeitadas por Genette, a sua funcionalidade na sintaxe narrativa tem sido atestada. Com efeito, a focalização omnisciente tem o mérito de permitir a facultação de informações que, na óptica do narrador, são pertinentes para o conhecimento minudente da história[88]. Assim, ao abrigo da focalização omnisciente, o narrador, quer em Godido, quer em Portagem, intervém com informações, que julga necessárias para tornar o discurso claro e compreensível[89]. São, pois, as informações doadas graças à instauração da focalização omnisciente o principal objecto de análise, nesta parte.

É assim que o narrador em Godido, demonstrando profundo conhecimento do ambiente diegético, descreve com rigor minucioso a paisagem externa, bem como o cenário marcado pelo nascimento da personagem central, Godido:

“Uma noite escura como todas as noites em que não há batuque nem mulheres na senzala. Na sua palhota, à luz mortiça de um candeeiro de óleo de coco, um corpo espreme‑se em contorções nervosas. A natureza verifica mais uma vez a lei de Lavoiseir: nada se está criando; é uma transformação da qual resulta Godido” (G. p. 19).

O apelo ao discurso figurado, através da colocação comparativa noite escura com todas as

noites em que não há batuque nem mulheres na Senzala, resulta da intenção do narrador em descrever o ambiente sórdido e triste que acolhe o nascimento Godido. Ambiente que, visto como decorrente de um discurso profético, funciona como indício de uma vida repugnante de Godido:

“Tomara desde logo aquele sabor a carvão e cozinha. Ah! Maldita hora! Fora um caso acidental. O vento arrastara‑o e a curiosidade também. Agora, paciência. Era viver camuflado a vida inteira como os carros de assalto, e propagar o mal aos seus descendentes. Verdade, verdadinha que ser da cor do carvão era uma tragédia. Mas as consequências daquela imprevidência manifestar‑se‑iam mais tarde (G. p.19).

Activando os seus hiper‑conhecimentos, o narrador omnisciente caracteriza o protagonista, realçando-lhe os traços negativos: tomara (...) sabor a carvão e cozinha, ao mesmo tempo que traça a sua sina: viver camuflado; propagar o mal aos seus descendentes. A associação, no mesmo segmento dos discursos conotativo: ... sabor a carvão,  valorativo: ...   maldita hora; ... caso acidental; ... viver camuflado; ... propagar o mal; ...era uma tragédia;... daquela imprevidência e figurado: camuflado como os carros de assalto (comparação); ser da cor do carvão (metáfora), ilustra claramente consciência do narrador, sensível ao mal ao desprezo a que o negro está sujeito. Esta consciência do narrador aproxima-o, em termos ideológicos, à personagem central, cuja motivação ideológica visa abolir o sistema colonial. Parece, pois, ser na sequência dessa comunhão ideológica que o narrador sofre com o protagonista, quer quando o representando a partir da sua perspectiva (focalização interna), quer quando se lhe refere as características físicas e psicológicas, bem como os actos, recorrendo à focalização omnisciente:

“Um pedaço de carvão ardendo em uma mentalidade ávida de justiça. Ódio à civilizações tidas por superiores por nela esconder qualquer coisa de nefasto. Eis a imagem duma raça: Godido” (G. p. 19).

Através de uma analepse, relato por antecipação de eventos cuja ocorrência na história é posterior ao presente da acção, o narrador extrai da subjectividade de Godido uma consciência virada vincada pelo desejo de ruptura da ordem vigente, a das civilizações tidas por superiores... Portanto, a mentalidade ávida de justiça nasce dessa consciência, dessa nova visão da realidade circundante:

“Godido pediu compaixão, um pouco de humanidade. Que pavor! E os céus não desmaiaram sobre a terra?! O negro queria emancipar‑se; não era outra coisa. Coitado! Ele a pedir liberdade! Ele que nascera livre nas costas da mãe, que nascera e vivera na escravatura, pedia a graça de <<dominus>> e chamavam-no um revoltado, inflamado de ideias enciclopedistas. Não sabia ler nem conhecia de vista a metafísica mas era partidário de Diderot. Não havia dúvidas; os civilizados já o tinham dito. Era qualquer coisa que ele, Godido desconhecia. Mas era‑o” (G. p. 22)

 

As expressões que pavor!;  coitado (discurso valorativo), marcados pelo sinal exclamativo, traduzem a afectividade do narrador pela personagem central. Com efeito, na passagem textual acima transcrita, o narrador sob a orientação da focalização omnisciente, evoca os seus conhecimentos ilimitados para resumir a vida do protagonista. Não se coibindo, contudo, de manifestar a sua subjectividade. Tal atesta-se quando o doador do discurso resume a vida inteira de Godido à escravatura, ou quando exibe o campo dos seus conhecimentos científico-                           -filosóficos, ao fazer alusão à metafísica, a Diderot, para se compadecer com o protagonista. Este, afinal, surge representado positivamente, como ilustra o adjectivo carnudo e o advérbio de modo estrondosamente (discurso valorativo), empregues para caracterizar os lábios de Godido (G. p. 22).

As afinidades ideológicas entre o narrador e a personagem central afirmam‑se também naqueles momentos em que a focalização omnisciente orienta a representação de outras personagens:

“A família Santos não vivia como as grandes massas miseráveis nem com as comodidades de Henri Ford. Era daquelas famílias condenadas a não ficar na História. Um grupo a equilibrar‑se nas cordas da economia. Escudos certos, para despesas certas os meses. Uma ou outra extravagância na lotaria a tentar a sorte. Não se liam jornais nem livros, que o papel estava caro e não compensava. Sopa e guisado, alternando com guisado e sopa do almoço para o jantar. Pão, muito pão, e... batatas”.

(G. p. 23).

Como referimos no sub‑capítulo anterior a este, Santos e a família representam, no quadro social da diegese, o segmento ideológico colonial, em cuja ruptura assentam as motivações ideológicas do protagonista e do narrador. Nessa ordem de ideias, o narrador, ao se referir à família Santos, detém-se em pormenores descritivos, com certo impacto desqualificador, como a debilidade económica, sugerida pelo recurso ao discurso figurado, ou seja: conotação: era daquelas famílias a não ficar na História, ou, quiasmo: sopa e guisado, alternando com guisado e sopa do almoço para o jantar, ou ainda, repetição quantificada: pão, muito pão.

Fernando é outra personagem que, devido a sua posição hostil contra os negros, a quem o narrador caracteriza depreciativamente:

“Arreia-lhe, pá! Uma nos queixos! − Dizia o Fernando, escondido na sua fragilidade raquítica” (G. p. 27).

Aproveitando-se da situação de diálogo das personagens, o narrador emite o seu juízo de valor sobre Fernando: desde o vocábulo escondido, que encerra uma mistura de medo e cobardia, até às expressões depreciativas fragilidade e raquítica, o narrador demonstra a sua antipatia pela referida personagem.

Mas a posição ideológica do narrador não se define apenas nos casos em que a sua subjectividade se confronta com personagens ideologicamente adversas. Define‑se também quando enfrenta personagens secundárias com as quais comunga a linha ideológica:

“A meio da viagem um branco fardado entrou na carruagem dos negros. Era um rapaz novo fortemente moreno, quase celestial no seu olhar vago, vindo lá de um Brasil de humanidade sem ter vivido nas cidades norte‑americanas nem conhecido os desconcertos da Índia ou da África do senhor Smuts. Parecia no racismo a pureza virginal de um selvagem ante os «Lusíadas»” (G. p. 28).

Ao traçar um retracto físico‑psicológico positivo do revisor quase homem: novo fortemente moreno; quase ceIestia1 no seu olhar; Parecia no racismo a pureza virginal de um selvagem ante os «Lusíadas», o narrador revela parte da sua subjectividade, desta feita, favorável a uma ideologia multirracial.

 

No entanto, o traço racial marca fortemente a subjectividade do narrador, no contacto com a diegese:

“[O revisor quase homem] revisava os bilhetes abstractamente e escorria tanta simpatia que a negralhada ficou-se numa interrogação, tinha vinte anos e o seu único pecado era a pele branca de tirano” (G. p. 29).

O narrador constrói uma imagem positiva do revisor quase homem, segundo ilustram as expressões avaliativas abstractamente e escorria tanta simpatia. Porém, opõe-se à sua raça, caracterizando-a com termos disfóricos, como pecado e tirano.

O aparente paradoxo na atitude do narrador encontra justificação no facto de, historicamente, o sistema colonial ter sido implantado pelos europeus, como estratégia de dominação. Portanto, o racismo de que frequentemente se suporta funciona como uma invenção ideológica.

Adoptando a focalização omnisciente, o narrador em Portagem dispõe de um campo aberto para evocar os seus conhecimentos ilimitados sobre a história. Deste modo, relatando a estreia da personagem central na vida laboral, o narrador insurge‑se não só contra o trabalho infantil, mas também contra a própria ocupação laboral:

“Também ele começou, como os outros meninos da sua idade, por acarretar numa padiola, o carvão mais miúdo (...). Mais tarde, em casa de patrão Campos, precisaram de um moleque e escolheram-no a ele (...). Proibiram-no de ir brincar com outros meninos da sua idade, (...) deveria ser apenas o moleque da casa grande. Moleque das limpezas....” (P. p. 16).

Dos referentes de idade: meninos; de ordem: proibiram‑no, deveria ser apenas reflecte‑se a censura do narrador, ao quadro que propicia tais práticas e atitudes.

Com esse objectivo de clarificar o relato que produz, o narrador, demonstrando os conhecimentos ilimitados que a omnisciência lhe confere, faculta mais informações. Compara, para o efeito, João Xilim com os negros do Marandal:

“O emigrante tornou‑se, porém, diferente dos negros do Marandal que o procuravam à noite para ouvir da sua boca histórias das aventuras por outras terras. Escutam assombrados a linguagem nova que tenta dar uma interpretação diferente da vida deles. Mas não a compreendem. Às vezes, um ou outro entende que João Xilim conheceu diversos padrões da condição humana (...).  João Xilim dói‑se dessa incompreensão dos mineiros” (P. p.31).

O sentido de enobrecimento que assiste ao termo diferente exprime, do ponto de vista da consciência do narrador, a sua adesão à subjectividade do protagonista, dadas as afinidades ideológicas entre ambos. Com efeito, fazendo apelo à sua omnisciência, o narrador realça a visão do mundo amplo de João Xilim, resultante do contacto com diversos padrões da condição humana: tenta dar uma interpretação diferente da vida (...). E, valendo-se ainda da focalização omnisciente, retracta os domínios psicológicos dos negros do Marandal, que ficam assombrados pela linguagem nova que não a compreendem e de João Xilim, que se dói dessa incompreensão. Mas por vezes, a adesão aos ideais do protagonista cessa, dando lugar a um discurso de repreensão: Não é que ninguém iria compreender essas coisas mesquinhas que são a razão do cansaço da vida toda de João Xilim? (P. p.107).

Ao abrigo da omnisciência, o narrador “invade”, sempre que o entende, o interior das personagens secundárias:

“Maria Helena é possuída por estranhas perturbações. Teme‑as e, ao mesmo tempo, deixa‑se penetrar por elas com um prazer sensual. O sangue corre‑lhe nas veias caudaloso e impaciente, as têmporas batem apressadamente e sem ritmo, os pensamentos galopam, transpõem todas as grades e evadem‑lhe o corpo para regiões desconhecidas” (P. p. 89).

À atitude benévola que rodeia as expressões apreciativas do discurso valorativo o sangue (...) caudaloso e impaciente; os       pensamentos galopam subjaz a consciência do narrador, marcada pela missão de contestar e denunciar o sistema colonial de exploraçãoe discriminação. Semelhante consciência esboça-se no segmento de caracterização do fogueiro Jaime:

“O fogueiro Jaime tivera a sua infância num bairro suburbano semelhante ao da casa do Caju, com uma cantina vendendo vinho aos homens que vinham de alugar as mulheres como a mãe dele, com um cantineiro arrecadando diariamente ou mensalmente as rendas dos quartos onde as negras embrutecidas se deitavam com homens de todas as raças que subiam da cidade para o arrabalde da gente de cor” (P. p. 48).

Neste breve relato do passado biográfico do fogueiro Jaime, o narrador recorre a expressões qualificativas como embrutecidas e suburbano para manifestar repúdio contra a vida precária da camada vítima da discriminação, densamente constituída por mulatos e negros, genericamente designados gente-de‑cor. A referência ao espaço (subúrbio/arrabalde); a prática de prostituição ( ... deitavam‑se com homens de todas as raças que subiam da cidade) remete à condição baixa dos discriminados, denunciada pelo narrador.

Portanto, vale afirmar que em ambos os textos (Godido e Portagem), o narrador, guiando‑se pelo código da focalização omnisciente, fornece um caudal de informações, sobretudo, do domínio subjectivo das personagens, bem como as relativas aos eventos e aos ambientes. É, pois, dentro dessa missão de facultação de informações e dados necessários para a compreensão da história, que o narrador manifesta o seu posicionamento ideológico. Portanto, verificámos, pela segunda vez, (a primeira foi observada na nossa abordagem em torno do estatuto do narrador), que a consciência ideológica do narrador orienta-se no sentido de romper com ordem vigente. O que quer dizer, pensando em Jameson, que o narrador de Godido e de Portagem defende uma utopia não racial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da focalização externa a alguns subsídios ideológicos

A fórmula da focalização externa designa a situação em que as personagens, os ambientes e os eventos são apreendidos do seu lado exterior. Portanto, a propriedade básica da focalização    externa consiste em permitir a “representação das características superficial e materialmente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas acções”[90]. O que quer dizer, por outras   palavras, que a modalidade da focalização externa não permite a representação do mundo interior. Porém, isso não deve inculcar a ideia de que a focalização externa é refractária à irrupção da subjectividade, pois quando combinada com outros códigos de focalização, a modalidade da focalização externa propicia a análise do interior de quem contempla[91]. Dando lugar, deste modo, à irrupção de posicionamentos ideológicos, quer da personagem focalizada (focalização interna), quer do próprio narrador, uma vez que em focalização externa, assim o entende M. Bal, a história é contada a partir do narrador.

A focalização externa prolifera sobretudo nos momentos de estreia de personagens, de introdução de novos espaços, ambientes, ou de descrição de determinados eventos. Portanto, a vigência deste tipo de focalização denota-se mais nos segmentos descritivos. Sob a vigência da focalização externa, o narrador descreve o momento que antecede o nascimento de Godido:

“Anda uma escuridão de vinte e duas horas sem luar. Noite que não se acende, negra como a vida de qualquer negro, como toda a noite sem batuque nem mulheres, embriagadas de puto na senzala” (G. p.15).

Através do discurso figurado: escuridão sem lua (pleonasmo), noite negra como a vida de qualquer negro (comparação), o narrador desenha, sob a forma de protesto, o quadro triste do quotidiano do negro da senzala.

Agindo ao limite da observação do exterior, condicionada pela instauração da focalização externa, o narrador descreve o protagonista no interior de um espaço prisional:

“Porque estaria ele ali, amarrado à imundície de um quarto que é um curral, sem uma esteira onde deitar o corpo e com o chicote do carcereiro a cortar‑lhe os gritos e a garganta? A sua cama é chão gelado de cimento. De tempos a tempos, a horas determinadas, as fechaduras castanhas rangem sobre si próprias, deixando passar um cheiro a bofe e papas” (G. p. 19).

 

Baseando‑se na observação directa, o narrador emite opiniões judicativas sobre Godido e sobre o recinto prisional onde jaze, ao mesmo tempo que se compadece do infortúnio daquele. Ilucida o discurso figurado: amarrado à imundície de um quarto que é um curral, com o chicote do carcereiro a cortar‑lhe os gritos e a garganta (metáfora); ou o discurso valotativo: chão gelado de cimento, fechaduras castanhas de ferrugem, cheiro a bofe e papas.É sintomática, nesse processo de ajuizamento, o tom condenatório do narrador, face à situação desumana imposta a Godido, personagem com a qual partilha a perspectiva ideológica.

No excerto Sonho de Negro, combinando a focalização externa com a interna, o narrador descreve o confronto físico entre Godido e o branco Antunes, bem como o cenário antecedente:

“O Antunes descontrolou os nervos e quase lhe amassou os seios com a manivela do automóvel. Sangue ou leite − um suor húmido − começou molhando‑lhe o quimono. (...) Godido estoirava raiva, a dois metros, por trás do eucalipto; e, quando Antunes ergueu de novo a manivela, o negro atirou‑se.

Como música de fundo, gritos de mulher e de homem à mistura; nos bastidores a negralhada hirta, embasbacada, a ver. O corpo sujo da negra ali defendido, pêlo por pêlo, dos insultos que o magoavam. (...) o corpo sem vida atirou‑o, ao acaso, para o automóvel” (G. pp. 32-33).

Nesta compilação de segmentos textuais, partimos da seguinte sugestão interpretativa, para deduzirmos a informação ideológica subjacente: Antunes fere Josefa com uma manivela, o que comove Godido. Este desafia Antunes em luta e mata‑o. Do ponto de vista temático‑ideológico, Antunes identifica‑se com o sistema colonial, Josefa é a vítima desse sistema, que Godido derruba, matando Antunes. Portanto, Godido afirma-se como o justiceiro a partir do qual se consubstancia a ideologia de utopia não racial.

À semelhança de Godido, em Portagem a focalização externa beneficia principalmente a

personagem central. Acompanhando-a «de fora», de acordo com a terminologia de Jean Pouilon, o narrador relata o exteriormente observável. Não se isentando, no entanto, de registar as marcas da sua subjectividade:

“Com a pá de madeira, João Xilim faz guinar a almadia para a ilhota no meio do rio (...). Todos os dias João Xilim vem ver o sol esconder‑se no mesmo sítio. E, como o sol, o mulato esconde‑se também, mas da gente da sua terra. Leva para ali, para sua ilhota do silêncio e da solidão, a confusão dos seus sentimentos” (P. p. 15).

Interessado em manter o «mistério» sobre o protagonista[92], o narrador não fornece, de uma vez, os dados completos de identificação de João Xilim. Porém, combinando a focalização externa com a omnisciente, revela uma parte significativa dessa identificação. Dessa estratégia combinatória abre‑se espaço para se fazer alusão à subjectividade do protagonista, e do narrador. Com efeito, Por um lado, da analogia como o sol, o mulato esconde‑se também da gente da sua terra transparece crise existencial de João Xilim, face a obscuridade da origem da sua raça. Por outro lado, com as expressões ilhota do silêncio e da solidão; a confusão dos seus sentimentos o narrador tenta representar fielmente o estado sentimental sofrido e perturbado da personagem central. Estado esse provocado pela descoberta da sua origem racial:

“Aproximou‑se da margem do rio onde o matagal se tornava menos denso. Correu por entre os arbustos raros, (...). Mas um sólito ruído o fez parar. Alguns metros adiante, a folhagem caída no chão rangia como se fosse pisada por gente ou bicho (...). Escondeu‑se atrás dum arbusto, afastou com cuidado as trepadeiras enoveladas e espreitou (...) e João Xilim descobriu [viu] que a mulher que estava embrulhada com patrão Campos era a negra Kati, sua mãe” (P. pp. 23‑24).

Os vocábulos matagal, trepadeiras enoveladas emprestam o sentido de ocultação. Tal justifica-se pela natureza fortuita da relação de intimidade entre Campos e Kati. E, por conseguinte, o sentido ridículo dessa relação, lexicalmente expressa pelo termo embrulhada[93].

Na sequência da sua adesão aos vínculos ideológicos do herói, o narrador relata-lhe algumas acções, em tom exaltativo e minucioso:

“Dá alguns passos vagarosamente e quando calcula que o engajador terá baixado a pistola, vira‑se subitamente, arremete de um salto e dá‑lhe uma cabeçada no estômago. O engajador cai desamparado para trás e larga a pistola. João Xilim (...) assesta‑lhe um murro brutal no nariz. O engajador desmaia, sangrando abundantemente” (P. p. 33).

Denota-se a preocupação do narrador em representar um João Xilim dotado de capacidades excepcionais. Documentam-no os advérbios de modo vagarosamente e subitamente, reveladores de perícia, e o adjectivo brutal, indicando alguma vigorosidade. Em contrapartida, ao representar o adversário do herói, utiliza termos que tendem a enfraquecê‑lo. Isto é, descreve o engajador sem reflexos rápidos, nem astúcia, portanto, condenado à derrota: cai desamparado, (...) desmaia, sangrando abundantemente. A tomada de posturas diferentes na representação das personagens pelo narrador encontra justificação nas suas motivações ideológicas. Retomando o fio de pensamento seguido no texto Godido, o facto de o engajador aliciar negros para o trabalho mineiro torna-o servidor/ (representante) do sistema colonial, enquanto João Xilim, demarcando-se desse sistema, defronta e vence o engajador, convertendo-se em herói libertador dos negros do Marandal do jugo colonial. Portanto, desenha-se, também em Portagem, a visão utópica do fim sistema colonial de exploração.              A dominante ideológica continua sintomática quando João Xilim, representado à luz da focalização externa, enfrenta o soldado, (p. 62), Marques, (p.73), o chaveiro, (p. 76), o encarregado das medições, (p. 113) e o Coxo, (pp. 152‑153).

A análise dos segmentos textuais, relatados sob a vigência da focalização externa permitu - nos examinar a subjectividade das personagens, mas sobretudo do narrador. Trata-se, como apurámos, da consciência ávida de um quadro social não racial. Portanto, em Godido e em Portagem, o narrador não pactua com a ordem montada: a colonial. Por isso, age no sentido de a romper.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


































 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONCLUSÃO

 




























Ao estabelecermos como objectivo do presente ensaio: demonstrar as evidências da articulação entre a técnica narrativa e a expressão da ideologia, partimos da premissa de que os textos escolhidos (Godido e Portagem) constituem potenciais matrizes dessa articulação. Assim,         movidos por este interesse, centramos as nossas reflexões nas modalidades técnico‑narrativas do estatuto do narrador e da focalização. Com efeito, à luz destas modalidades, examinámos determinados segmentos textuais, tendo alcançado os resultados seguintes:

Em relação a matéria do estatuto do narrador, verificámos que em ambos os textos se institui um narrador heterodiegético. Portanto, um narrador caracteristicamente autónomo relativamente à história que conta. Facto que lhe permite intervir directamente na acção, comentando, conjecturando, opinando, criticando, sempre que achar necessário, pois o seu estatuto isenta-o de qualquer julgamento pelos seus actos. O que quer dizer, por outras palavras, que, gozando do estatuto de heterodiegese, o narrador manifesta livremente a sua subjectividade. Subjectividade essa marcada por uma ideologia de feição utópica anti-colonial e anti-racial, segundo se pode divisar do seu discurso protestatário e contestatário, inserido no sistema colonial de exploração e discriminação.

Adoptando: (i) a focalização interna, o narrador apreende a história através de uma personagem nela inserida. Portanto, esta opção favorece a vigência da interioridade da personagem focalizada, neste caso específico, da personagem central, nas obras em estudo. Trata-se, conforme a análise aponta, de uma interioridade que se identifica com uma ideologia defensora de uma utopia não racial. Isto é, quer em Godido, quer em Portagem, a acção da personagem principal orienta-se rumo a um futuro (utopia) em que não haveria negros. Só homens por toda a parte (G. p. 34); (ii) a focalização omnisciente, o narrador assume uma posição de transcendência sobre o que conta, habilitando‑se, deste modo, a tomar o controlo máximo dos acontecimentos, avaliando-os segundo o nível da sua consciência. E assim, a tentativa de dissecação dessa consciência conduziu-nos a importantes insinuações ideológicas, inscritas no desejo de ver abolido o sistema colonial de discriminação; (iii) a focalização externa, modalidade que lhe impõe a posição de observador, o narrador apreende directa e exteriormente as personagens, o espaço e os eventos. Porém, não se exime de manifestar a sua subjectividade, cuja linha definitória, como tivemos a ocasião de referir, é traçada por uma ideologia orientada para a ruptura da ordem vigente;

À comunhão ideológica entre as personagens centrais nos dois textos, acrescentamos, reiteramente, as afinidades também em termos ideológicos a personagem central e o narrador nas obras analisadas. Algo comprovado pelo sentimento de afecto do narrador pela personagem principal, nos dois textos. Porém, mais em Godido do que em Portagem. No entanto, será na forma que cada um busca os seus ideais que as personagens centrais se vão distinguir uma da outra. Com efeito, enquanto Godido propõe o uso de uma força para pôr fim à ordem instalada, João Xilim opta por encarregar ao tempo, ou aos outros, a missão de romper com a referida ordem.

Portanto, fica aqui evidenciado que a leitura feita dos textos Godido e Portagem, à luz das modalidades técnico-narrativas de estatuto e de focalização, deu lugar a dedução de significativas insinuações ideológicas. Significativo também nos parece a alcance conseguido com a presente reflexão, pois, para além de através dela se reafirmar o texto literário como o lugar privilegiado da coexistência e interacção dos códigos literários e paraliterários; representa, do ponto de vista da história literária, uma proposta de recepção de parte de um valioso legado da geração literária da década de 50, do passado século XX. Uma geração que, quer sob a forma de poesia, quer sob a escassa forma de ficção, se evidenciou pela representação do contexto social, político e cultural, do seu tempo. Aliás, não passa despercebido o facto de, embora distantes um do outro, no tempo, Godido (1952) e Portagem (1965) se desenvolverem com base no mesmo projecto temático-ideológico: denúncia e contestação do sistema colonial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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31. VARGA, Kibédi. Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 1981­



 



































































































































[1] Dias, 1988.
Do conjunto de textos quer compoõem esta obra, escolhemos um, intutulado “ Godido” e que, por seu turno, inclui os excertos “Sonho de Negro” e “Godido (Extra) ”.
[2] Mendes, 1981.
[3] Cf. Mendonça, 1980. Pp.33‑45
[4] História, vol.3, 1993. P.129.
[5] Cf. Penvenne, 1982. Pp1-2
[6] Por não perceberem o ardil que o seu estatuto representava (constituía um dos poderosos dispositivos ideológicos da metrópole, para recrutar, controlar e usar a mão-de-obra negra), os assimilados tendiam, por um lado, a "inculpar a burguesia europeia local e a população branca em geral pelas injustiças do colonialismo" e, por outro lado, nutriam desprezo pela maioria negra ou indígenas.
[7] Enfrentando dificuldades na concorrência com a pequena burguesia africana, na conquista dos melhores postos de emprego e outras regalias, o cada vez crescente grupo dos trabalhadores brancos organizou-se em sindicato, para exigir, entre outras coisas, as adopções de barreiras raciais no acesso a esses sectores. E como não convinha ao governo colonial criar polémica com o referido grupo, aprovou-se a criação e funcionamento do referido sindicato.
[8] Cf. História, vol. 3, op cit., p. 63.
[9] Cf. Penvenne, op cit., p.12
[10] Idem, ibidem.
[11] Cf. História, vol. 3, p.197
[12] Ibidem, p. 198
[13] Ibidem, pp. 231-232
[14] Ibidem, p.226
[15] No referido período formou‑se, em Moçambique, o MDJM, Movimento dos Jovens Democratas Moçambicanos. Composto por Sobral Campos (líder), Sofia Pomba Guerra, Raposo Beirão, João Mendes, Ricardo Rangel e Noémia de Sousa. O movimento tinha como objectivo “combater as grandes injustiças sociais de que estavam a ser vítimas os trabalhadores por parte dos patrões... (e)...  promover a unidade de todos os africanos ... “ (Ibidem, p. 202).
[16] Ibidem, p. 225

[17] Mendes, 1980, p. 31
[18] Cf. Mendonça, 1980, p.38. O carácter nacional da Literatura deste período é confirmado também por estudiosos como Russel G. Hamilton,                        (cf. Hamilton, 1984. P.15), Orlando Mendes (cf. Mendes. 1980, p. 47).
[19] A revista “O Novo Cancioneiro” foi um dos principais órgãos divulgadores da estética do neo‑realismo português em Moçambique (cf. Mendonça, 1980, p. 38).
[20] Cf. Saraiva e Lopes, s/d. P.1078
[21] Idem, Ibidem
[22] Laranjeira, 1985. P. 227
[23] Cf. Todorov, 1987, p. 137
[24] Reis, 1983, p. 49
[25] Mendonça, op. Cit., p. 37
[26] Referindo-se à superioridade numérica da poesia sobre outras formas literárias, no período em referência, Orlando Mendes afirma que tal deveu-se ao facto de a poesia ser uma forma de expressão que melhor pode sensibilizar e contundir o inimigo com menores possibilidades de repressão, para além de circular facilmente pelo país, a partir das cidades onde se elabora. (Cf. Op. Cit., 1980. P. 36). Na sua colocação, Orlando Mendes traça as principais linhas temáticas da escrita na altura produzida: “sensibilizar” e contundir o inimigo”. 
[27] Intitulada Proposta de Edição Comentada do texto de João Dias, Godido, a reflexão em causa foi apresentada, por Luis Vasconcelos Pedro, sob a forma de um trabalho de projecto, para a obtenção do grau de licenciatura em Linguística, à Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Dezembro de 1996.
[28] Esta denominação coincide com o título genérico do presente texto.
[29] A descrição destes e de outros conceitos, convocados para a discussão, será feita em momento e lugar próprios.
[30]A idade muito jovem do autor (João Dias começou a escrever aos dezassseis anos), o facto de ter deixado inacabada a obra (esta foi organizada e publicada postumamente por seus amigos) de onde extraímos o texto em estudo podem constituir razões suficientes para a inconsistência estrutural dos dos excertos em análise. Aliás, parece-nos que pelas mesmas razões se explicam as oscilações verificadas na determinação do género para Godido e Outros Contos. Na óptica de alguns estudiosos, trata-se de uma colectânea de contos; Porém, para outros a obra é um romance.
[31] Cf. Dias, 1989. P. IV
[32] Cf. Ferreira [manuscrito], p. 7
[33] Paralelamente à focalização e ao estatuto do narrador (assunto a retomarmos proximamente), factores como a idade, a instrução, entre outros, justificam a função, quase, de assessoria do narrador, quando acompanha a personagem central. Nota-se, por exemplo, que o narrador, adulto, instruído e com uma visão do mundo ampla e sólida, acompanha um Godido recém-nascido, adolescente, jovem, sem instrução e com uma cosmovisão limitada.  
[34] Na História de Moçambique, Gungunhana foi o último imperador do Império de Gaza, e consolidou o seu heroísmo na luta de resistência contra a presença estrangeira em Moçambique. Sendo Godido seu filho.
[35] Ao contrário do que sucede com Godido e Outros Contos, parece não haver flutuações na classificação de Portagem como um romance. Com efeito, a obra reveste-se de uma linguagem de elevada elaboração; nela movimenta-se um número maior de personagens; denotam-se espaços diversificados, bem como uma complexidade acentuada do tempo do discurso.
[36] Carmen Lydia de Sousa Dias utiliza o termo “momentos” para designar essas passagens e caracteriza-os como diversos e intercomplementares onde as fases cruciais da vida de João Xilim são rememoradas uma a uma, e, a cada nova repetição são acrescidos os novos conflitos advindos de outras circunstâncias adversas. Sendo, portanto, possível totalizar cerca de dez momentos (Cf. Sousa Dias, (s/d). P. 76).
[37] Nessas regiões, Xilim verifica que, como ele, outras pessoas são marginalizadas: “Embarcou como moço de limpeza num cargueiro que se destinava ao Porto do sul. Ali deram-lhe licença para desembarcar e viu os seus irmãos mulatos e negros que trabalhavam no cais e nas fábricas e eram tão subtraídos à civilização como negros do Marandal; O fogueiro Jaime era um homem da cidade, vivera uma infância aventureira nos subúrbios, crescera vadio entre meninos negros, chineses, indianos mulatos e brancos, todos eles mais ou menos repelidos por quem lhes deveria afecto.”  (p. 26); Cenários semelhantes a estes são experimentados por outras personagens. Tais são os casos de Campos (pp. 35 e 36), Maria Helena (pp.88, 89), Esteves (pp.99, 100 e101), Borges (pp.127 e 157).

[38] Cf. Sousa Dias, s/d., p.71
[39] Cf. Reis, 1983. P. 233.  João Dias (Godido), Orlando Mendes (Portagem) constam como autores representativos da produção literária dos anos 50, conforme referimos anteriormente (p.Viii). Este facto, aliado ao objectivo deste ensaio, justifica a nossa atenção na relação entre o texto literário e a ideologia.
[40] Um dos maiores alcances no estudo das relações entre a literatura e a ideologia foi conseguido pela estética marxista, com a sua teoria do reflexo. Com efeito, como refere Maria Alzira Seixo, a categoria materialista do reflexo tem sido, desde sempre, ou deturpada segundo uma concepção que a identifica com a imagem directa e lhe atribui características de representação, ou evitada por incómoda e incompreendida. (Cf. Seixo, 1976.  P.15)
[41].  Cf. Eagleton, 1991. P. 1
[42] . Cf. Louis Althusser e Gruy Rocher, citados por Reis, 1983. P. 250
[43] . Cf. Jameson, 1981. P. 289
[44] . Cf. Jameson, op. cit., loc. cit.
[45]. Para esta estudiosa brasileira, o conjunto das ideias que surgem para esclarecer o real mistificado pela ideologia do poder, as análises que desmistificam a dominação no plano das ideias formam uma contra-                  -ideologia. (Cf. Chaui, 1981. P. 93)
[46] . Sobre esta matéria, ver Aguiar e Silva, op. cit., pp. 90-96
[47]. Cf. op. cit., p. 96
[48] Cf. Matusse, 1986. P. 69
[49] . Cf. Aguiar e Silva, op. cit., p. 695
[50]. Cf. Reis e Lopes, 1987. P. 249
[51] . Cf. op. cit, loc. cit
[52] . G. Genette, citado por Aguiar e Silva, op. cit., p. 761
[53] . Cf. op. cit.,  p. 48
[54] . Reagindo contras as posições contrárias à irrupção da subjectividade do narrador no discurso, Carlos Reis qualifica de utópica a possível neutralidade do narrador. Cf. Reis, 1982. P. 80
[55]. Cf. op. cit., p. 244
[56]. Cf.  op. cit., p. 255
[57]. Daqui em diante, empregaremos a forma abreviada G. (Godido) e P. (Portagem) entre parênteses no interior do texto, para nos referirmos às transcrições do corpus. Daqui em diante, empregaremos a forma abreviada G. (Godido) e P. (Portagem) entre parênteses no interior do texto, para nos referirmos às transcrições do corpus.
[58] . De acordo com Genette, o narrador transfere, geralmente, a sua função ideológica para certas personagens. Passando tais personagens a objectos de observação. (Cf. op. cit, pp. 255 e 256)
[59]. O registo do discurso científico-filosófico Justifica-se dado o elevado nível intelectual do narrador, a que fizemos referência no início deste estudo.
[60]. Na esfera da política colonial, a linguagem patrão/empregado não define apenas as relações no trabalho, distingue sobretudo o instruído do não instruído, o civilizado do não civilizado, o inteligente do não inteligente, enfim, a submissão do segundo pelo primeiro. É, pois, este quadro discriminatório que se contesta no tecido da história.
[61]. O discurso justificativo e explicativo, de acordo com os ensinamentos de Genette, está ao serviço da função ideológica do narrador (Cf. Genette, 1995. P, 255).
[62]. Refira‑se que essa esperança está esboçada na parte derradeira do penúltimo capítulo da narrativa, intitulado “Sonho de Negro” ( cf. p. 34).
[63]. O discurso modalizante resulta, segundo refere Genette, da utilização, pelo narrador, de “locuções modalizantes”, como “ talvez”, “sem dúvida”, “como se”, “aparecer como”, a fim de dizer hipoteticamente aquilo que não poderia afirmar sem sair da focalização interna (cf. op. cit., p. 201)
[64]. V. M. de Aguiar e Silva, In: (Reis, 1981. P. 213) 
[65]. Cf. Genette, 1995. P.187
[66].  Cf. op. Cit., Pp. 183- 187. Cf., também, Reis e Lopes, 1987. Pp. 158- 159    
[67]. Temos em mente, por exemplo, a posição tomada por Percy Lubbock, em relação à escolha e vigência de um certo ponto de vista. Posição essa, que apesar de ser menos inflexível que as outras (defende a variação de ponto de vista pelas personagens), caí no defeito de considerar que a opção pelo ponto de vista de narrador deve ser uma solução ocasional ”, Portanto, marginaliza, de certa maneira, a figura do narrador. (in: Reis: 1980. P.36)

[68]. Cf. Aguiar e Silva, 1988. Pp. 765-767 
[69] . Cf. op. Cit., loc. Cit.
[70] . Cf. Reis, 1981. Pp.49-50
[71] . Cf. Genette, 1995. Pp. 187-192
[72] . Fazendo alusão às potencialidades da personagem focalizadora na apreensão da história, Reis e Lopes afirmam que o que está em causa não é estritamente aquilo que a personagem vê, mas  de um  modo geral, o que é alcançado por outros sentidos do seu campo de consciência, ou seja,  o que é alcançado por outros sentidos para além da visão, bem como o que é já conhecido previamente e o que é objecto de reflexão interiorizada (Cf. op. cit., p.164).
[73] . Para uma informação mais detalhada sobre o conceito de herói, cf. Reis e Lopes, op. cit., pp. 306‑310, e Aguiar e Silva, op. cit., pp. 667‑595.
[74]. Cf. Reis e Lopes, op. cit , p. 188
[75] . Cf. Reis, op. Cit,  p. 429
[76] . Cf. Genette, op. cit.,  p. 189
[77] . De acordo com Édouard Dujadin, monólogo interior (discurso imediato, para Genette) é o discurso sem auditor e não pronunciado, pelo qual uma personagem exprime seu pensamento mais íntimo, (Cf. Genette, op. cit., pp,17 9 e 191 e Reis e Lopes, op. cit., p. 230)

[78].  O termo matapa designa folhas de mandioqueira, com as quais se preparam um molho do mesmo nome, bastante apreciado no sul de Moçambique. Toucinho-do-céu é um doce de ovos e açúcar, da tradição dos mosteiros, vendido nas pastelarias.
[79]. Esta prática do narrador, orientada geralmente para a sua forma de ver o mundo, é constante no texto e decorre do contexto da supervisão da personagem, por um lado, e na sua intervenção directa na diegese, por outro lado.

[80]. Propensos à expressão da subjectividade do narrador, os registos do discurso relevam de importância especial neste trabalho, já que “a sua formulação contribui decisivamente para incutir na mensagem uma certa configuração ideológica e afectiva”. (Cf. Reis, 1981. P. 365)  
[81] . Cf. Reis, 1981. P. 88
[82]. Cf. Hamilton, 1984. P. 15
[83] . Referindo-se à conexão entre os dois tipos de focalização, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes afirmam que a focalização externa pode decorrer imedeiata e simultaneamente da instauração da focalização interna. Segundo os mesmos autores, a conjugação dos dois tipos de focalização surge naquelas situações em que o olhar de uma personagem da história em situação de observação (focalização interna) implica uma focalização externa sobre aquilo que esse observador limitada e exteriormente pode apreender e deduzir, não se isentando tal observador de manifestar juizos subjectivos acerca do que vê. (Cf. Reis e Lopes, 1987. P. 163
[84] . Cf. Aguiar e Silva, op. Cit., p. 699
[85] Cf. Reis e Lopes, op. cit., p. 310
[86] . Cf. Aguiar e Silva, op. Cit., p. 776
[87] . Cf. Reis e Lopes, op. Cit., p.168
[88] . Ibidem, p. 168
[89] . A preocupação do narrador em produzir um discurso claro é notória em ambos os textos. A mesma estará, eventualmente, na origem das constantes supervisões das personagens, pelo narrador.
[90] . Cf. Reis e Lopes, op. cit. P. 162
[91] , Cf. Reis e Lopes, op. cit., p. 167
[92] . Um dos efeitos da instauração da focalização externa é a ideia do <<mistério>>, ou seja, o autor não nos diz de um momento para o outro tudo o que sabe, como diria Michel Raimond.
[93] . Situação similar ocorre em Godido, num relato também narrado sob a vigência da focalização externa: “Não ia meia hora, o Buick do senhor Antunes ali parava. Josefa apareceu da confusão da noite. Um quimono preso dos ombros e dos seios, e a capulana de riscado azul, escondendo‑lhe o pudor até aos pés. Trouxe atrás de si o resfolhar de panos e de plantas” (G. p. 31).


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